“Notas sobre a evolução da morada paulista”. Luiz Saya (1911-1975)
1957. Há 67 anos
chorar. Só faremos lembrança a Vossa Mercê que se sua pessoa ou cousa muito sua desta Capitania não acudir com brevidade pode entender que não terá cá nada, pois que estão as cousas desta terra com a candeia na mão e cedo se despovoará, porque assim os capitães e ouvidores que Vossa Mercê manda, como os que cada quinze dias nos metem os governadores gerais, em outra cousa não entendem, nem estudam senão como nos hão de esfolar, destruir e afrontar, e nisto gastam o seu tempo: eles não vem nos governar e reger, nem aumentar a terra que o Senhor Martim Afonso de Sousa ganhou e Sua Majestade lhe deu com tão avantajadas mercês e favores. Vai isto em tal maneira e razão, que pelo eclesiástico e pelo secular não há outra cousa senão pedir e apanhar, e um que nos pede e outro que nos toma tudo é seu e ainda lhes ficamos devendo. E se falamos prendem-nos e excomungam-nos, e fazem de nós o que querem, que como somos pobres e temos o remédio tão longe não há outro recurso senão baixar a cerviz e sofrer o mal que nos põem.
Assim, Senhor, acuda, veja, ordene e mande o que lhe parecer que muito tem a terra que dar: é grande, fértil de mantimentos, muitas águas e lenhas, grandes campos e pastos, tem ouro, muito ferro e açúcar, e esperamos que haja prata pelos muitos indícios que há, mas faltam mineiros e fundidores destros. E o bom governo é o que nos falta de pessoas que tenham consciência e temor de Deus e valia, que nos mandem o que for justo, e nosfavoreçam no bem e castiguem no mal quando o merecermos, que tudo é necessário. Diogo de Quadros é ainda provedor das minas, até agora tem procedido bem, anda fazendo um engenho de ferro a três léguas desta vila ecomo se perdeu no Cabo Frio, tem pouca posse e vai devagar, mas acaba-lo-á e será de muita importância por estar perto daqui como três léguas, e haverá metal de ferro; mais há na serra de Biraçoiaba 25 léguas daqui para o sertão em terra mais larga e abastada; e perto dali como três léguas está a Caatiba de onde se tirou o primeiro ouro e desde ali ao Norte haverá 60 léguas de cordilheira de terra alta, que toda leva ouro, principalmente a serra de Jaraguá, de Nossa Senhora do Monte Serrate, a de Voturuna, e outras. Pode Vossa Mercê fazer aqui um grande reino a Sua Majestade, há grande meneio e trato para Angola, Peru e outras partes, podem-se fazer muitos navios, que só o bem se pode trazer de lá, pois há muito algodão, muitas madeiras e outros achegos. Quanto à conservação do gentio que não convém termos e avexarem-nos, assim como nos fazem a nós o faremos a eles, e os [índios] cristãos vizinhos são quase acabados, mas no sertão há infinidade deles e de muitas nações, que vivem à lei de brutos animais, comendo-se uns aos outros, que se os descermos com ordem para serem cristãos, será causa de grande proveito, principalmente o gentio Carijó, que está 80 léguas daqui por mar e por terra e se afirma que podem ser 200.000 mil homens de arco. Esta é uma grande empresa e a Vossa Mercê ou cousa muito sua lhe estava bem que Sua Majestade lhe concedesse, e lhe importaria mais de 100.000 cruzados, afora o de seus vassalos, o que pelo tempo em diante pode redundar a esta capitania, além do particular do mesmo gentio vindo ao grêmio da Santa Madre Igreja.
Tornamos a lembrar, acuda Vossa Mercê, porque de Pernambuco e da Bahia, por mar e por terra lhe levam o gentio do seu sertão e distrito, e muito cedoficará tudo ermo com as árvores e ervas do campo somente; porque os portugueses, bem sabe Vossa Mercê que são homens de pouco trabalho, principalmente fora de seu natural. Não tem Vossa Mercê cá tão pouca posse, que das cinco vilas que cá tem com a Cananéia pode por em campo para os Carijós mais de 300 homens portugueses, fora os seus índios escravos, que serão mais de 1.500, gente usada ao trabalho do sertão, que com bom caudilho passam ao Peru por terra, e isto não é fábula.
Já Vossa Mercê será sabedor como Roque Barreto, sendo capitão, mandou ao sertão 300 homens brancos a descer gentio e gastou dois anos na viagem, com muitos gastos e mortes, e por ser contra uma lei de El Rei, que os padres da Companhia trouxeram, o governador geral Diogo Botelho mandou provisão para tomarem o terço para ele, e depois veio ordem para o quinto; sobre isto houve aqui muitotrabalho e grandes devassas e ficaram muitos homens encravados, que talvez há nesta vila hoje mais de 65 homiziados, não tendo ela mais de 190moradores ; se lá for alguma informação de que a gente desta terra é indômita, creia Vossa Mercê o que lhe parecer com o resguardo que deve aos seus, que não há quem sofra tantos desaforos. Nosso Senhor guarde a pessoa e família de Vossa Mercê, etc. – São Paulo, 13 de janeiro de 1606. (Assinados os juízes e vereadores).” 3
3. ATAS DA CÂMARA VILA DE SÃO PAULO: 1596 – 1622. Publicação Oficial doArquivo Municipal de São Paulo: Volume II: Séculos XVI – XVII. São Paulo, Duprat eCompanhia, 1915, p. 497-500.
No início do de 1606, o juiz ordinário era Domingos Rodrigues; os vereadores da Câmara Luís Fernandes e Pedro Nunes; o procurador do Concelho, Manoel Antônio Francisco Siqueira; os escrivães, Simão Borges e João Vieira Sarmento (seria um destes dois escrivães o autor da carta?); e os almotacéis, Rafael de Oliveira e Sebastião Fernandes. 4
4. Mesma obra: p. 145. A transcrição do documento fala apenas que a carta foiassinada pelos juízes e vereadores da Câmara; não ficamos sabendo, portanto, quem é o outro ou os outros juízes. Também não é claro de onde surgiu esta lista apresentada, dado que as leituras das Atas referentes ao ano de 1606 iniciam em 24 de Junho e a carta data de 13 de Janeiro. Posse e defesa do território, busca de riquezas minerais e necessidade de mão de obra são os pontos dinâmicos da estrutura socioeconômica que caracterizam esse ciclo de expansão (penetração), reconhecimento e defesa do território interior do Brasil.
A costa já era conhecida e a empresa açucareira, movida a mão de obraescrava constituída por índios e africanos, já estava bem desenvolvida a pontode provocar a cobiça dos holandeses; sua defesa, à base de fortificações, erauma questão distinta.
Na Ata de 24 de Dezembro de 1612, os moradores da vila de São Paulo se queixavam de que os homens que iam ao sertão e ajudavam a “vir o gentio carijó que voluntariamente vêm para esta capitania [de São Vicente] e os moradores lhe saiam ao caminho com suas ferramentas [e] mantimentos para os ajudarem a vir e deseja-lhes com isso granjear as vontades e ver se os querem servir pagando-lhes com vestir e doutrinar e o dito administrador [dos índios Mateus da Costa Amorim] os avexa com excomunhões sendo a jurisdição real de Sua Majestade e suas justiças não indo contra direito nenhumda Santa Madre Igreja porque não dão guerra a ninguém nem levantam bandeira...” 5
E é aqui que a bandeira sai do baú onde se guardavam os pertences da Câmara e se torna símbolo, por metonímia, de uma expedição militar, mesmo que a intenção belicosa seja do inimigo, no caso o índio: levantar a bandeira em uma lança significa ter intenção agressiva declarada. No caso específico, a intenção do gentio carijó que vinha a São Vicente não era agressiva, pois não levantavam bandeira e nem faziam guerra a ninguém.
Nesse pequeno trecho está resumida toda a problemática daquilo que seria tratado no futuro como o /ciclo das Bandeiras Paulistas/:
os índios vinham voluntariamente ou involuntariamente ao encontro dos paulistas? os índios eram escravizados ou trabalhavam em troca de uma recompensa em termos de alimento, vestuário, moradia e alimentação? nos conflitos entre os paulistas e a Santa Madre Igreja – sendo que nesse momento em São Paulo a Santa Madre Igreja era fortemente (se não totalmente) representada pela Companhia de Jesus – qual era a posição da jurisdição real de Sua Majestade? e o que podemos entender por jurisdição real de Sua Majestade em um momento que o rei era espanhol, mas a administração era portuguesa?
Atenção para o fato de que possivelmente nenhuma dessas respostas poderá ser unívoca, dentro de um contexto pleno de contradições políticas e conflitos sociais. A acreditar nas declarações (bastante duvidosas, em face do que sabemos através da documentação de época, principalmente pelas cartas dos governadores e dos capitães-generais, e pelas cartas e relatos dos padres jesuítas) dos paulistas, estes também não davam guerra a ninguém e nem levantavam bandeira: os índios carijós voluntariamente lhes vinham procurar.
Na história americana, não faltam exemplos de grupos indígenas que, por diversas razões e principalmente por necessidade de aliança de defesa contra outros grupos indígenas inimigos, fizeram pactos com os conquistadores de além-mar. Mas as entradas para descer índios e a permanente oposição dos religiosos contra essa prática são muito claras nas Atas, como, por exemplo, a 23 de Março de 1619:
“... e veio o senhor doutor e desembargador Antão de Mesquita de Oliveira e ordenou e mandou o seguinte – primeiramente que tivessem particular cuidado de acudir pela jurisdição de Sua Majestade e particularmente nas excomunhões e censuras eclesiásticas com que de ordinário nesta capitania [de São Vicente] os vigários da vara e mais justiças eclesiásticas se intrometiam a proceder contra os moradores por vender índios forros e fazerem entradas ao sertão a descer gentio, porque ainda que uma coisa e outra sejam tão reprovadas por leis de Sua Majestade, contudo não era coisa em que asjustiças eclesiásticas se pudessem intrometer por pertencer o castigo dos ditoscrimes somente às justiças seculares e nos casos que sucederem tirarão agravo para a Relação e o enviarão ao procurador da Coroa dando-lhe conta de tudo para que acuda a sua obrigação e corra com o dito agravo e mande acudir com o provimento que se der em Relação no dito agravo e que o mesmo [Páginas 5, 6 e 7 do pdf 2]
Guerra é o termo empregado, quando o autorizam o porte e o caráter mais ou menos oficial do empreendimento: guerra de Jerônimo Leitão, guerra da Parnaíba, guerra a que ora vamos com o sr. João Pereira de Sousacapitão. Os que participam da empresa não tem denominação especial... Soldados deste arraial é a expressão feliz que só uma ou duas vezes aparece. Em regra, vão todos englobados numa palavra genérica: homens, gente, ou companhia.” 15
15. MACHADO, José de Alcântara. VIDA E MORTE DO BANDEIRANTE. SãoPaulo, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1930, p. 260-263.“Curioso é que as palavras paulista, bandeirante e bandeira sejamrelativamente recentes em nossa documentação nacional.
Para os hispano-americanos e os espanhóis, a designação dos paulistas sempre foi portugueses de San Pablo. O mais antigo emprego do gentílico de que temos notícia ocorre numa ordem do visconde de Barbacena a 27 de julho de 1671. Daí em diante generalizou-se rapidamente. A palavra bandeira vemo-la empregada pela primeira vez numdocumento do Conselho Ultramarino, datado de 1676 e pelo padre Altamiranoem 1679 a falar em ‘banderas de certonistas’, meio século antes do que pensaAlcântara Machado.
Mas bandeirante parece ter-se tornado corrente mais tarde. Os espanhóis diziam ‘certones’, como em 1682 Juan Ortiz de Zárate. O mais antigo emprego do substantivo, como se nos deparou, data de 1640, quando Dom Luís de Mascarenhas, Conde d’ Alva, se referiu aos ‘bandeirantes’ de uma ‘bandeyra’ despachada contra os índios Pinarés. Os mais antigos documentos paulistas designam geralmente as bandeiras por viagem, entrada, jornada. Frota é mais recente e tornou-se inapagável para recordar a bandeira de João de Magalhães no Rio Grande do Sul.
Muito papel já se tem gasto e muita sutileza empregada para estabelecer distinção entre entrada e bandeira. Visa semelhante nuga determinar o que se nos assemelha absolutamente indeterminável à luz do critério reinante na era das bandeiras. Quando a entrada passa a bandeira ou vice-versa é que se torna dificílimo discriminar.
Os velhos inventários paulistas referem-se frequentemente a entradas e viagens e os cronistas nos falam de sertanistas que ‘topavam bandeiras e gentios brabos’...
O primeiro a querer estabelecer esta divisão imaginosa entre bandeira e entrada pensamos que haja sido o padre Rafael Galanti¸ o erudito autor de estimado compêndio de história pátria. 16Os seus argumentos diferenciadores de uma e outra coisa parecem-nos sobremodo inconsistentes. Pretendem outros autores reservar o nome de entrada às expedições organizadas pelas autoridades coloniais e bandeira para as que se puseram a campo por influência de particulares.
Mas a fronteira entre um e outro tipo frequentemente se nos afigura tudo quanto há de mais indefinido. Em todo caso tal distinção é mais aceitável do que a explicação de Galanti. Permite ela chegar-se à extravagância de que uma bandeira privada de seu estandarte passa a ser entrada.” 17
16. O padre jesuíta Rafael Maria Galanti, professor no Colégio Anchieta em NovaFriburgo, foi também autor de um COMPÊNDIO DE HISTÓRIA DO BRASIL, editado em SãoPaulo no ano de 1905.17. TAUNAY, Affonso d’ Escragnolle. HISTÓRIA DAS BANDEIRAS PAULISTAS.São Paulo, Edições Melhoramentos, sem data (1951), Tomos I-II; t. II, p. 310-311.O texto de João Capistrano Honório de Abreu (publicado noCapítulo 9, intitulado O Sertão, dos Capítulos de História Colonial, cuja primeiraedição data de 1907) a que Alcântara Machado se refere é o seguinte:“Podemos começar pela capitania de São Vicente. O estabelecimento dePiratininga, desde a era de 530, na borda do campo, significa uma vitóriaganha sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o esforço de váriasgerações. Deste avanço procede o desenvolvimento peculiar de São Paulo.O Tietê corria perto; bastava-lhe seguir o curso para alcançar a bacia doPrata. Transpunha-se uma garganta fácil e encontrava-se o Paraíba, encaixadoentre a serra do Mar e a da Mantiqueira, apontando o caminho do Norte. Para oSul, estendiam-se vastos descampados, interrompidos por capões e atémanchas de florestas, consideráveis às vezes, mas incapazes de sustentaremo movimento expansivo por sua descontinuidade. A Este apenas uma veredaquase intransitável levava à beira-mar, vereda fácil de obstruir, obstruída maisde uma vez, tornando a população sertaneja independente das autoridades damarinha, pois um punhado de homens bastava para arrostar um exército, eabrir novas picadas, domando as asperezas da serra, rompendo as massas devegetação, arrostando a hostilidade dos habitantes, pediria esforços quasesobrenaturais.Sob aquela latitude, naquela altitude, fora possível uma lavoura semieuropéia, de alguns, senão todos os cereais e frutos da península. Ao contrárioo meio agiu como evaporador: os paulistas lançaram-se a bandeirantes.
Bandeiras eram partidas de homens empregados em prender e escravizar o gentio indígena. O nome provém talvez do costume tupiniquim, referido por Anchieta, de levantar-se uma bandeira em sinal de guerra. Dirigia a expedição um chefe supremo, com os mais amplos poderes, senhor da vida e da morte de seus subordinados. Abaixo dele com certa graduação marchavam pessoas que concorriam para as despesas ou davam gente.” 18
18. ABREU, João Capistrano de. CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL (1500-1800) & OS CAMINHOS ANTIGOS E O POVOAMENTO DO BRASIL. Quinta Edição, revista,prefaciada e anotada por José Honório Rodrigues. Brasília, Editora Universidade de Brasília,1963, p. 121-122. Capítulos de História Colonial: Primeira Edição: 1907. Os Caminhos Antigose o Povoamento do Brasil: Primeira Edição: 1930.
E o trecho de Anchieta citado por Capistrano se encontra em uma carta que o irmão José de Anchieta escreveu em São Vicente, e datou de 16 de Abril de 1563, ao superior geral da Companhia de Jesus, em Roma, padre Diego Laynez. Foi incluída pelo padre Serafim Leite em sua edição das Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil 19 : [Páginas 12 e 13 do pdf 2]
Segundo o texto dos padres Mancilla e Maceta, a primeira bandeira, cujo caudilho foi Simão Álvares, iniciou seu movimento de ataque contra a missão de Santo Antônio a 30 de Janeiro de 1629, com o beneplácito do capitão mor Antônio Raposo Tavares. Pouco menos de dois meses depois, outra bandeira, por cujo caudilho ia Antônio Bicudo de Mendonça, entrou com armas no povoado de São Miguel em 23 de Março de 1629. Paralelamente, uma terceira bandeira, tendo por caudilho Manuel Mourato (Coelho), atacava a redução de Jesus Maria, em 20 de Março, portanto três dias antes do segundo ataque. Ainda segundo os padres, o responsável – autor e cabeça – de todas essas entradas e malocas era Manuel Preto.
“Manuel Preto, grande fomentador, autor e cabeça de todas estasentradas e malocas, que por toda sua vida andou nelas, levando a muitosoutros portugueses e tupis em sua companhia, para trazer índios à força dearmas, e agora ultimamente tem dito que quer morrer nelas. Logo que este anovoltou a São Paulo, com Pedro Vaz de Barros, em cuja companhia havia ido,logo sem descansar se foi outra vez com muitíssima gente de portuguesesmamelucos e tupis com título de povoar o porto de Santa Catarina, mas ointento que leva é cativar e desolar índios, e para abonar esta sua empresa,leva consigo um sacerdote, que por razão de seu estado religioso, temobrigação de abominar estas entradas tão injustas.” 2727. Mesmos autores, mesma obra: p. 476-477. Tradução Dalton Sala.Nesse último trecho, e a despeito das acusações dos jesuítas, ficaclara uma segunda intenção: se não de povoamento, de ocupação do território,ultrapassando Cananéia e descendo em direção à ilha de Santa Catarina.Pois que a ação dos bandeirantes realmente garantiu um território que jáestava sob disputa antes das coroas dos dois reinos, Portugal e Espanha,assentarem em uma mesma cabeça, como resultado das indefiniçõesprovocadas pelo Tratado de Tordesilhas: os portugueses achavam quepassava por além de Buenos Aires, os espanhóis insistiam que Cananéia era oextremo meridional das possessões portuguesas.Os portugueses enxergavam claramente que os grandes rios faziam efariam as vezes de fronteira e não se enganaram... Voltaremos a isso maisadiante, na Proposta, módulo segundo deste presente trabalho.Por enquanto, retomando o fio da meada, estamos rastreando apresença da palavra /bandeira/ em textos de época; e, ao que parece, foram ospadres jesuítas, mais exatamente os padres Justo Mancilla e Simão Maceta,que utilizaram a palavra pela primeira vez com o sentido de expedição militar,entrada, maloca, ação belicosa contra as missões jesuíticas do Paraguai econtra as aldeias indígenas, com objetivos escravizadores em relação à mãode obra indígena.A palavra apareceu exatas seis vezes no texto: duas com o sentido deestandarte, quatro com o sentido de expedição militar, comandada por umcapitão, como o citado Antônio Pedroso de Barros, filho de Pedro Vaz de Barros e de Luzia Leme, capitão da vanguarda da companhia de Antônio Raposo Tavares, que assolou por alguns meses o sertão do Guairá na zona do rio Huybay, hoje rio Ivaí, principal afluente do Paraná ao sul do Paranapanema, se valendo também de artimanhas consideradas demoníacas pelos padres da Companhia. E vai aparecer mais uma vez:
“Enfim, para acabar, acrescentaremos somente aqui, por conclusão e arremate de todas estas maldades feitas por esta entrada, o que ao Padre Cristobal de Mendonça contou um destes portugueses que saquearam nossas aldeias: de como Antônio Pedroso, morador da vila de São Paulo e capitão da vanguarda desta companhia de Antônio Raposo Tavares, a maior parte dos nativos que agora nesta entrada cativou: no rio de Huybay, aonde esteve uns meses por capitão de uma bandeira, juntou por via do demônio, porque havendo colhido a um corpo de um feiticeiro morto, no qual o demônio costumava falar aos índios, o pôs em uma choça, com muita veneração, como o haviam tido os infiéis, para que por ele falasse o demônio e lhe dissesse que todos se entregassem aos portugueses, e correndo esta fama se lhe juntou muita gente.” 28
28. Mesmos autores, mesma obra: p. 480. Tradução Dalton Sala.Não sem alguma ironia, a palavra /bandeira/, nome pelo qualessas incursões paulistas ao sertão – seja em busca de riquezas minerais oude mão de obra indígena, seja em defesa de um território que os portuguesesacreditavam seu – ficaram conhecidas, esse nome ao que parece lhes foiatribuído pelos jesuítas espanhóis.E foi esse nome que lhes conferiu importância; pois, segundoMaquiavel, bandeiras são formações militares, e formações militares tem umadignidade que bandos, malocas, corridas, algazarras, etc., não têm.A HISTÓRIA DO BRASIL DE FREI VICENTE DO SALVADOR: 1627Em 1627, portanto dois anos antes da Relação dos Agravosescrita por Maceta e Mancilla, Frei Vicente do Salvador, da Ordem dos FradesMenores de São Francisco de Assis, concluiu a sua História do Brasil. 29Nela, não fala de bandeiras quando trata de expedições; o termoque utiliza são entradas, mesmo que o objetivo seja militar.29. SALVADOR, Frei Vicente do. HISTÓRIA DO BRASIL por Frei Vicente doSalvador, natural da Bahia. Edição revista por Capistrano de Abreu. São Paulo, WeiszflogIrmãos, 1918.No Livro Terceiro, História do Brasil do tempo que o governouTomé de Sousa até a vinda do governador Manoel Teles Barreto, frei Vicentetrata das entradas que naquele tempo se fizeram pelo sertão.“Entre estas entradas no sertão fez uma Antônio Dias Adorno, ao qualencomendou o governador que trabalhasse por descobrir algumas minas, oqual entrou pelo rio das Contas, que é da capitania dos Ilhéus, e seguindo a sua corrente, que vem de mui longe, rodeou grande parte do sertão, ondeachou esmeraldas e outras pedras preciosas, de que trouxe as amostras e ogovernador as mandou ao reino onde, examinadas pelos lapidários, asacharam muito boas. Mas nem por isso se mandou mais a elas, sinal quehaviam ido mais a buscar peças que pedras, e assim trouxeram sete mil almasdos gentios topiguaens...” 3030. SALVADOR, Frei Vicente do. Obra citada: p. 216.Entre os objetivos das entradas, além de descobrir minas ebuscar peças (entenda-se capturar índios), estão as lutas contra os negrosrefugiados nos palmares. No caso citado, trata-se de um chefe indígena,Zorobabé, que em 1603, em seu caminho de volta à Paraíba, acompanhado deseus potiguares, é convocado para atacar os mocambos dos palmares (o quemostra que esse problema dos fugidos é anterior às invasões holandesas).“De como o governador veio de Pernambuco para a Bahia emandou a Zorobabé, que se tornava com seus potiguares para Paraíba, dessede caminho nos negros de Guiné foragidos, que estavam nos palmares do rioItapucuru ....” 3131. Mesmo autor, mesma obra, p. 395.“... informado o governador de um mocambo ou magote de negrosde Guiné fugidos que estavam nos palmares do rio Itapucuru, quatro léguas dorio Real para cá, mandou-lhes que fossem de caminho dar neles, e osapanhassem às mãos, como fizeram, que não foi pequeno bem tirar aquelaladroeira e colheita que ia em grande crescimento. Mas poucos tornaram aseus donos, porque os gentios mataram muitos e o Zorobabé levou alguns quefoi vendendo pelo caminho para comprar uma bandeira de campo, tambor,cavalo e vestidos, com que entrasse triunfante na sua terra, como diremos emoutro capítulo...” 3232. Mesmo autor, mesma obra, p. 396.Por causa disso, Zorobabé foi preso e mandado para Lisboa,como se contará no Capítulo Quadragésimo Primeiro: De como Zorobabéchegou à Paraíba e por suspeito de rebelião foi preso e mandado ao reino. 3333. Mesmo autor, mesma obra, p. 400-403.“... Zorobabé, indo da guerra dos aimorés para a Paraíba, deu decaminho, por mandado do governador, no mocambo dos negros fugidos, matoualguns e prendeu outros de que levou os que quis e os foi vender aos brancos,com que comprou bandeira de campo, tambor, cavalo e vestidos para entrartriunfante em a sua terra...” 3434. Mesmo autor, mesma obra, p. 400.Fica claro que o problema de negros refugiados em palmares jáera anterior às invasões holandesas; o texto de frei Vicente não é preciso [Páginas 20 e 21 do pdf 2]
E, nas Informações, as palavras usadas por Pedro Taques são/entrada/ e /tropa/, referindo-se às expedições de que estamos tratando.“Depois que Pedro Álvares Cabral Senhor de Azuzara eAdiantado Mor da Beira, saindo de Lisboa para a Índia no ano de 1500,descobriu a Terra de Santa Cruz, nome que a ambição do comércio perverteuno de Brasil, pelo interesse do pau assim chamado, fundou a Vila da Capitaniade São Vicente, primeira povoação em toda a América Portuguesa, MartimAfonso de Souza pelos anos de 1531 40 como donatário de 100 léguas decosta por doação do Senhor Rei Dom João, o Terceiro, intentou antes de serecolher ao Reino no ano de 1534 conseguir descobrimento de Minas de ouro,de prata, ou de pedrarias no Sertão da costa Sul da mesma Capitania o quenão se verificou pela destruição que na Tropa o bárbaro Gentio Carijó, matando20 homens Europeus do corpo dela. Fundou-se depois a Cidade da Bahia peloprimeiro Governador dela, Tomé de Souza no ano de 1549, e lhe foramsucedendo no lugar outros Governadores gerais do Estado até Luís de Brito deAlmeida em 1572. No seu tempo fez uma entrada no Sertão SebastiãoFernandes Tourinho, natural da Capitania do Espírito Santo, e recolhendo-sedeu conta haver descoberto uma pedraria de Esmeraldas, e outra de Safiras.Ao Governador Geral mandou fazer entrada a este Sertão pelo Capitão AntônioDias Adorno, escoltado de 150 portugueses e 400 índios e com efeito achou naSerra da parte de Leste Esmeraldas, e em outra parte do Sueste Safiras.Destas pedras, que trouxe Adorno, estavam algumas ainda imperfeitas oupouco maduras, e o Governador as enviou ao Senhor Rei Dom Sebastião;porém pela fatalidade da Monarquia, que passou ao domínio de outro Príncipe,se não tratou mais destes descobrimentos.” 4140. Na verdade, São Vicente foi fundada em 1532. Esta e outras imprecisões, quese notam também em frei Vicente do Salvador, se devem ao fato de que o Diário daNavegação de Pero Lopes de Souza (irmão de Martim Afonso que registrou o itinerário daesquadra entre 1530 e 1532) só foi reencontrado no século XIX, por Varnhagen, que otranscreveu e publicou em Lisboa, no ano de 1839.41. TAQUES de Almeida Paes Leme, Pedro. NOTÍCIAS DAS MINAS DE SÃOPAULO E DOS SERTÕES DA MESMA CAPITANIA. São Paulo, Editora da Universidade deSão Paulo, 1980, p. 31.Fica claro, a partir da leitura do texto de Pedro Taques, quedepois das questões relativas às fronteiras fluviais e à posse da mão de obraindígena que levaram à destruição das missões jesuíticas, as entradasrealizadas pelas tropas dos paulistas buscavam as riquezas minerais.Das ações paulistas, pode-se mesmo entender que desde o primeiromomento importava aos portugueses o controle geopolítico de um territórioindeterminado politicamente pelo Tratado de Tordesilhas, mas limitadogeograficamente pelos grandes rios Paraguai, Paraná e Prata.É claro também que esse controle geopolítico não ignorava as riquezasdo sertão, entre as quais se incluía a mão de obra indígena. Valendo-se daspalavras de Pedro Taques, pode-se entender que a passagem da monarquiaportuguesa a outro príncipe significou um interregno nos projetos lusitanos, namedida em que se tornou prioritário afastar os possíveis sócios castelhanos doterritório onde se acreditava estarem as desejadas riquezas minerais. [Página 23 do pdf 2]
E, nas Informações, as palavras usadas por Pedro Taques são/entrada/ e /tropa/, referindo-se às expedições de que estamos tratando.“Depois que Pedro Álvares Cabral Senhor de Azuzara eAdiantado Mor da Beira, saindo de Lisboa para a Índia no ano de 1500,descobriu a Terra de Santa Cruz, nome que a ambição do comércio perverteuno de Brasil, pelo interesse do pau assim chamado, fundou a Vila da Capitaniade São Vicente, primeira povoação em toda a América Portuguesa, MartimAfonso de Souza pelos anos de 1531 40 como donatário de 100 léguas decosta por doação do Senhor Rei Dom João, o Terceiro, intentou antes de serecolher ao Reino no ano de 1534 conseguir descobrimento de Minas de ouro,de prata, ou de pedrarias no Sertão da costa Sul da mesma Capitania o quenão se verificou pela destruição que na Tropa o bárbaro Gentio Carijó, matando20 homens Europeus do corpo dela. Fundou-se depois a Cidade da Bahia peloprimeiro Governador dela, Tomé de Souza no ano de 1549, e lhe foramsucedendo no lugar outros Governadores gerais do Estado até Luís de Brito deAlmeida em 1572. No seu tempo fez uma entrada no Sertão SebastiãoFernandes Tourinho, natural da Capitania do Espírito Santo, e recolhendo-sedeu conta haver descoberto uma pedraria de Esmeraldas, e outra de Safiras.Ao Governador Geral mandou fazer entrada a este Sertão pelo Capitão AntônioDias Adorno, escoltado de 150 portugueses e 400 índios e com efeito achou naSerra da parte de Leste Esmeraldas, e em outra parte do Sueste Safiras.Destas pedras, que trouxe Adorno, estavam algumas ainda imperfeitas oupouco maduras, e o Governador as enviou ao Senhor Rei Dom Sebastião;porém pela fatalidade da Monarquia, que passou ao domínio de outro Príncipe,se não tratou mais destes descobrimentos.” 4140. Na verdade, São Vicente foi fundada em 1532. Esta e outras imprecisões, quese notam também em frei Vicente do Salvador, se devem ao fato de que o Diário daNavegação de Pero Lopes de Souza (irmão de Martim Afonso que registrou o itinerário daesquadra entre 1530 e 1532) só foi reencontrado no século XIX, por Varnhagen, que otranscreveu e publicou em Lisboa, no ano de 1839.41. TAQUES de Almeida Paes Leme, Pedro. NOTÍCIAS DAS MINAS DE SÃOPAULO E DOS SERTÕES DA MESMA CAPITANIA. São Paulo, Editora da Universidade deSão Paulo, 1980, p. 31.Fica claro, a partir da leitura do texto de Pedro Taques, quedepois das questões relativas às fronteiras fluviais e à posse da mão de obraindígena que levaram à destruição das missões jesuíticas, as entradasrealizadas pelas tropas dos paulistas buscavam as riquezas minerais.Das ações paulistas, pode-se mesmo entender que desde o primeiromomento importava aos portugueses o controle geopolítico de um territórioindeterminado politicamente pelo Tratado de Tordesilhas, mas limitadogeograficamente pelos grandes rios Paraguai, Paraná e Prata.É claro também que esse controle geopolítico não ignorava as riquezasdo sertão, entre as quais se incluía a mão de obra indígena. Valendo-se daspalavras de Pedro Taques, pode-se entender que a passagem da monarquiaportuguesa a outro príncipe significou um interregno nos projetos lusitanos, namedida em que se tornou prioritário afastar os possíveis sócios castelhanos doterritório onde se acreditava estarem as desejadas riquezas minerais. [Página 24 do pdf]
Essa prioridade, para além dos ataques às missões jesuíticas realizados com a colaboração dos muitos castelhanos que viviam na vila de São Paulo, levou à destruição das povoações espanholas de Ciudad Real e Villa Rica no Guairá, de Santiago de Jerez no Itatim, e de Concepción del Bermejo no Chaco argentino.
É claro que, afastados os espanhóis, pela guerra e por uma novasituação política, as minas se tornaram a perspectiva prioritária das entradasdas tropas paulistas. Mas não sem grandes custos e dificuldades imensas.
“Neste Sertão das Esmeraldas, faleceu o Governador e administradordas Minas, Agostinho Barbalho Bezerra, com muita parte do corpo de seutroço, ficando por esta desgraça, sem efeito o descobrimento das custosasEsmeraldas tão desejadas, como jamais descobertas, tantas quantas vezesforam procuradas. Vendo os Paulistas estas fatalidades se congratularam paraformarem tropas, e com elas penetrarem nos Sertões, por diversos rumos adescobrimentos das Minas de ouro, de prata e de Esmeraldas, e deste eficazdesejo deram conta os Camaristas ao Príncipe Regente o Senhor Dom Pedro,em mil seiscentos e setenta e dois, que se dignou mandar-lhes agradecer porCarta de vinte e um de Março de mil seiscentos e setenta e quatro, escrevendotambém contas firmadas de seu real punho todas elas de um mesmo teor,posto que com diversas datas...” 42
42. Mesmo autor, mesma obra, p. 54.E assim se foram os paulistas de novo em direção ao sertão, mascom um propósito mais concentrado, pois não havia mais padres jesuítas oucolonos espanhóis a combater, nem os ferozes índios dos sertões seprestavam facilmente à escravidão como os relativamente dóceis tupi-guarani.
“A Tropa que formou Lourenço Castanho Taques, a quem se deuPatente de Governador da Gente dela, se encaminhou para o Sertão dosCataguazes. A Tropa de Fernão Dias Paes a quem se deu Patente deGovernador desta grande Leva, se encaminhou para Sabarabuçu, fazendo porele passagem para o Reino dos Mapaxos, ao descobrimento das Esmeraldas,levando em sua companhia por Capitão-mor, e seu futuro sucessor a MatiasCardoso de Almeida, por ter grande experiência deste Sertão, e bárbarosíndios dele nas entradas, que já haviam feito conquistando ao Gentio, quehavia domado, como tudo se relata na sua Patente de treze de Março de mil eseiscentos e três e na do Governador Fernão Dias datada na Bahia em trintade Outubro de mil seiscentos e setenta e dois pelo Governador Geral AfonsoFurtado de Castro do Rio de Mendonça.
Os Oficiais da Câmara Pascoal Rodrigues da Costa, Domingos daSilva de Santa Maria, Francisco Barbosa Rebelo e Estevão Fernandes Portoem 8 de Agosto de 1672 encarregaram a Francisco de Camargo a penetrar oSertão com sua tropa e descobrir Minas de ouro, prata e pedras preciosas,para assim darem os Paulistas a conhecer o muito que desejavam empregarse no Serviço de Sua Alteza, pela Carta que havia escrito aos Oficiais daCâmara, e aceitou esta conduta o dito Camargo.
Em três de Setembro do dito ano de setenta e dois, representou por sua petição aos Oficiais da Câmara o Paulista Manoel Paes de Linhares dizendo que pela notícia, que tivera da Carta de aviso do Secretário do Estado, e pelas que tinha do Sertão, se animava a entrar para ele a procurar descobrimento de Minas sem reparar na sua crescida idade, e sobra de achaque, facilitando-lhe contrastes inconvenientes o amor, que tinha ao seu Príncipe, e Soberano Senhor, e à Pátria, e que não podia conseguir o seu intento sem auxílio deles Camaristas, aos quais pedia lhe concedessem os homiziados, que fossem capazes de o acompanhar, não tendo partes e que quarenta léguas em quadra do distrito onde descobrisse prata, sem espaço ou ouro não se extrairia Gentio algum, por serem necessários para o serviço das mesmas Minas, sem incluir no distrito de Serro Sabarabuçu as ditas quarenta léguas; e os Oficiais da Câmara tomaram sobre a matéria um assento em o primeiro de Outubro de mil seiscentos e setenta e dois, no qual resolveram, que o Juiz Ordinário e Presidente Pascoal Rodrigues da Costa, concedeu aos homiziados, que fossem capazes para esta empresa.” 43 [Páginas 25 e 26 do pdf]
presumir que giravam muitos dos conquistadores pelo centro dos Sertões, eatravessavam as Minas, saindo em Bandeiras (que assim chamavam ascompanhias que para esta diligência se armavam), e recolhendo-se ao depoiscom a presa que facilmente podiam segurar.” 47
De Sertões deriva Cláudio a denominação sertanistas:“Era Bartolomeu Bueno dotado de bastante agilidade e fortalezade espirito e, como tinha perdido em jogos todo o seu cabedal, foi fácil querermelhorar de fortuna, tomando sobre si, com o favor de alguns amigos eparentes, a grande empresa a que havia dado princípio [seu cunhado] AntônioRodrigues Arzão.
Convocados todos e guiados pelo roteiro que lhes deixara o falecido[Antônio Rodrigues Arzão], saíram da Vila de São Paulo pelos anos de 1694.Romperam os matos gerais, e servindo-lhes de norte o pico de algumas serras,que eram os faróis na penetração dos densíssimos matos, vieram estesgenerosos aventureiros sair finalmente sobre a Itaverava, serra que de VilaRica dista pouco mais de oito léguas: ai plantaram meio alqueire de milho; eporque o Sertão era mais estéril de caça que o do Rio das Velhas, para estepassou Bartolomeu Bueno a tropa, enquanto madurava a pequena sementeirade que esperava manter-se, para continuar o descobrimento. [Página 28]
No ano seguinte, que foi o de 1695, voltaram os referidos sertanistas a colher a sua planta, e entrando na Itaverava foram encontrados do Coronel Salvador Fernandes Furtado e do Capitão Manuel Garcia Velho e outros, conquistadores também do Gentio e povoadores das Vilas que ficam ao leste de São Paulo: já então trabalhavam com algum desembaraço os primeiros sertanistas, ajudados de um grande número de índios, que haviam cativado nos sertões do Caeté e Rio Doce; mas como lhes obstava a falta de experiência necessária, e não tinham instrumentos de ferro para a laboreação, apenas se contentavam com o pouco que podiam apurar em pequenos pratos de pau ou de estanho, servindo-lhes os mesmos paus aguçados de cavar a terra e descobrir os cascalhos, formações em que se conserva e se cria o ouro.
Quis Miguel de Almeida, um dos companheiros do Bueno, melhorar dearmas, e propôs ao Coronel Salvador Fernandes Furtado a troca de umaclavina, dando-lhe por avanço todo o ouro que se achasse nos da comitiva;aceitou o Coronel a oferta, e dando-se busca ao ouro, se não achou entreoutros mais que doze oitavas; recebeu-as o Coronel, e como Manuel GarciaVelho quisesse ter a vaidade de aparecer com todo aquele ouro em São Paulo,cometeu ao Coronel a venda de duas índias, mãe e filha, a preço das dozeoitavas: conveio este no trato e compra das índias, as quais catequizadas, sebatizou uma com o nome de Aurora, e outra com o de Célia. Desta última hánotícia que faleceu há poucos anos na Vila de Pitangui, em casa de uma filhacasada do dito Coronel, e aqui tem fundamento histórico o episódio de Aurora.Despedidos uns sertanistas dos outros, partiu ufano para São Paulo oCapitão-Mor Manuel Garcia Velho; entrando na Vila de Taboaté, ai o foi visitarCarlos Pedroso da Silveira; e porque lhe não faltava habilidade e engenho parase conciliar com os patrícios, houve a si as doze oitavas de ouro; com elas sepassou ao Rio de Janeiro, apresentou-as ao Governador (como já se disse) efoi premiado com a patente de Capitão-Mor da Vila de Taboaté.” 4848. Mesmo autor, mesma obra, p. XII-XIII.FREI GASPAR DA MADRE DE DEUSFrei Gaspar da Madre de Deus, nascido em Santos no ano de 1715,pertenceu à Ordem de São Bento, na qual ocupou diversos cargos, inclusive ode cronista.Descendente, como Pedro Taques, dos mais antigos povoadores doPlanalto de Piratininga, foram ambos resgatados por Taunay em seu esforçopara construir uma identidade paulista em torno das bandeiras e dosbandeirantes, a despeito de que essas palavras não foram utilizadas nem porPedro Taques, nem por frei Gaspar.Também concordam – Pedro Taques, frei Gaspar (e CláudioManoel) – em uma prática historiográfica que valoriza a fonte escrita, odocumento como testemunha e prova da história que aconteceu. Essa tentativade uma interpretação rigorosa dos fatos pela avaliação e cotejamento dasfontes textuais levou à atenuação da retórica em benefício da citação e datranscrição. [Página 29 do pdf]
As Memórias para a História da Capitania de São Vicente foramfinalizadas em 1786 e publicadas pela Academia Real de Ciências de Lisboaem 1797, pouco antes da morte de frei Gaspar, ocorrida em 1800. 4949. MADRE DE DEUS, Frei Gaspar. MEMÓRIAS PARA A HISTÓRIA DACAPITANIA DE SÃO VICENTE, HOJE CHAMADA DE SÃO PAULO, DO ESTADO DO BRASIL,PUBLICADAS DE ORDEM DA ACADEMIA REAL DAS CIÊNCIAS POR FREI GASPAR DAMADRE DE DEUS, MONGE BENEDITINO E CORRESPONDENTE DA MESMA ACADEMIA.Lisboa, na Tipografia da Academia, 1797, com licença de Sua Majestade.Como observou José Honório Rodrigues, essa publicação significou a“consagração da historiografia regional e da pesquisa histórica de caráter localpor uma instituição oficial metropolitana”.“Manteve sempre com Pedro Taques uma amizade sólida, consolidadapelo interesse histórico e a pesquisa histórica. Diz Taunay que os doispermutavam informações e submetiam seus trabalhos à crítica um do outro.Frei Gaspar e Pedro Taques imprimiram à historiografia de sua épocaum caráter novo ao se dedicarem com tanto empenho às pesquisas nosarquivos e cartórios, sobretudo locais. Esta foi uma tendência duplamente novada historiografia setecentista, a pesquisa documental e a regionalização dosestudos.Escrito seu estudo sobre São Vicente, baseado em investigações novase próprias, Frei Gaspar dera-lhe o título de Fundação da Capitania de SãoVicente e Ações de Martim Afonso de Souza e foram Diogo Toledo Lara e seuirmão, o Marechal Arouche Rendon, que apresentaram a obra ao exame daAcademia Real de Ciências, pois Diogo fora eleito sócio em 1795. Mudado otítulo, atendidas pequenas exigências formais da Academia, fora a obraaprovada e impressa pela mesma em 1797.Era a consagração da historiografia regional e da pesquisa histórica decaráter local por uma instituição oficial metropolitana.” 5050. RODRIGUES, José Honório. HISTÓRIA DA HISTÓRIA DO BRASIL: PARTE 1:HISTORIOGRAFIA COLONIAL. São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 145.Mais ocupado em relação à sequência de eventos da expediçãode Martim Afonso de Souza e com problemas relativos à fundação e limites daCapitania de São Vicente, frei Gaspar pouco se ocupa com as expedições dospaulistas em direção ao sertão.“Pelo Sertão atravessou a animosidade dos Paulistas comindizíveis trabalhos os fundos de todas as Capitanias Brasílicas, em cujosdomínios, depois de afugentarem inumeráveis Gentios, descobriram as MinasGerais; as de Goiazes; as do Cuiabá, e as de Mato Grosso: e como tudoquanto descobriam os valorosos naturais das Vilas sujeitas à de São Vicente,se reputava parte desta Capitania, chegou ela a apossar-se de quase todos osfundos dos outros Donatários. Eis aqui a razão, porque a Capitania de SãoVicente, noutro tempo possuiu tudo, quanto agora abrangem os GovernosGerais de Minas Gerais, Goiazes, Mato Grosso, São Paulo, e Rio de Janeiro, etambém os subalternos de Santa Catarina, e Rio Grande de São Pedro.” 51 [Página 30 do pdf]
Uma curiosidade: Washington Luís (1869-1857) não nasceu em SãoPaulo, mas em Macaé, no Rio de Janeiro, e fez seus estudos no Colégio PedroII, como aluno interno.Em 1891, formou-se advogado pela Faculdade de Direito de SãoPaulo, iniciando-se na carreira política como vereador e intendente em Batatais(cidade no interior do estado, na zona do café).Membro do Partido Republicano Paulista, foi sucessivamentedeputado estadual, prefeito da cidade de São Paulo, presidente da província deSão Paulo, senador e presidente da República, cargo do qual foi deposto pelogolpe de Outubro de 1930.Exilado, viveu muitos anos no estrangeiro (Estados Unidos eEuropa), regressando ao Brasil, apenas em 1947; voltando a atuar comohistoriador, escreveu um livro sobre como eram as coisas Na Capitania de SãoVicente. 95Neste livro, no Capítulo XII, trata de As Entradas ao Sertão. 9695. LUÍS, Washington. NA CAPITANIA DE SÃO VICENTE. São Paulo, Editora daUniversidade de São Paulo, 1980.96. Mesmo autor, mesma obra, p. 179-193.Washington Luís ressalta o papel civilizador (mas não exclusivo)dos jesuítas:“O trabalho dos jesuítas foi incontestavelmente imenso nacivilização brasileira, mas dela não foi o único elemento. Houve também outrose valiosos, sem os quais ele não se realizaria: houve também outras ordensreligiosas e o clero secular que concorreram para a civilização.
Os jesuítas se devotaram ardentemente à catequese do gentio, cuja cristianização iniciaram. Se o seu propósito exclusivo triunfasse, São Paulo seria uma cidade de tupis. Os colonos imigrantes queriam trabalhadores para as lavouras que abriam, e só os encontravam nos índios, cuja cativação haviam começado; e se eles aí estivessem sozinhos, não tivessem embaraços da catequese cristã, São Paulo seria apenas um pequeno povoado mestiço de obsoletos proprietários. A ação dos colonos não seria completa sem o auxílio moral da religião.”
97. Mesmo autor, mesma obra, p. 180.Em contraponto, as alianças entre os colonos e os aborígenes:“Em todas as bandeiras, a maior parte dos combatentes eramtropas auxiliares compostas de índios aliados e amigos.” 9898. Mesmo autor, mesma obra, p. 181.Segue-se o um discurso sobre o papel heroico dos bandeirantes:“Os navegadores temerários e tenazes seriam substituídos pelossertanistas atrevidos; as bandeiras iriam ocupar na atenção da História o lugardas frotas. Era natural, lógico, fatal, pois, o esquadrinha [Página 50 do pdf]