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"O Romance do Prata" de Paulo Setúbal (Sabarabuçu, serra Sabarabussú)
193403/04/2024 22:03:21

“Cuidado, senhor, cuidado! O sertão do Brasil é traiçoeiro. Todos os que, até hoje, tentaram desvendar as riquezas do Sabarabussú, morreram... Não escapou um só!” Essa frase é repetida 28 vezes na obra “Romance da Prata”, lançado em 1934 por Paulo Setúbal.



1591... D. Francisco de Sousa, Senhor de Beringel, é o governador-geral do Brasil. A essa época, pela Bahia, anda muito aceso aquele teimoso sonho escaldante das minas de prata. Està Melchior Dias no mais agudo do seu romance.Vai senão quando, pela terra do pau-de-tinta, principia a esvoaçar esta palavra selvagem: Sabarabuçu. Sim, dum momento para outro, como soprada por invisível bruxo, ecoa no Brasil, pela primeira vez, a estranha palavra màgica. Sabarabuçu!

Aquilo, na língua do bugre, queria pitorescamente dizer: montanha-grande-queresplende15. E a palavra cabalística tomba, radiosa e tentadora, na crendice ingênua do país infante. Tomba. Avulta. E, avultada, incendeia logo todos os ânimos.

Invade todos os povoados. Estronda por todos os ares. — Sabarabuçu! Sabarabuçu! Tão singular palavra, não hà dúvida, essa tão saborosa montanha-grandeque-resplende, é o que vai criar, naquele cândido Brasil que alvoreja, umas das suas lendas mais ruidosas e mais fascinadoras.

Palavra que em breve se tornarà miragem lampejante, atràs da qual, irrefreàveis e sôfregos, se atufarão pelosmatagais bandos de sertanejos visionàrios. Palavra que vai inspirar, nessa àspera arremetida cabocla, que foi o desbravamento inicial do Brasil, bela e aventureira pàgina de feitos selvagens. Pàgina rústica, sim, mas pàgina que irà ajuntar-se com lustre, e grandiloquamente, a essa nossa bravia e fúlgida epopéia sertaneja: aconquista do território.

Como apareceu a curiosa quimera? Assim:D. Francisco de Sousa não acreditava muito nas minas de prata de MelchiorDias. Para D. Francisco (é o que se depreende nítido dos seus atos) as riquezasmetàlicas do Brasil não estavam na Bahia. Estavam em S. Paulo. Ao sul e não aonorte. E tinha bem razão o governador para pensar assim. Na Bahia, desde tempos,andavam os desbravadores com suadas canseiras a encravar-se pelos matos embusca de metais. Mas andavam baldadamente. Nada de ouro, nada de esmeraldas,nada de prata...

É verdade que, jà por esse tempo, trazidos pela boca de uns aventureiros chegados do sertão, soaram aos ouvidos de D. Francisco de Sousa (e este por sua vez os enviara ao Marquês de Alenquer) certos boatos de uma serra que havia ao sul, bem ao sul, muitíssimo prenhe de riquezas. Era uma serra confusa, de nome estranho, onde diziam existir prata. "... noticias de uma serra chamada Sabarabussú, donde os moradores que a ella foram (entre elles um ourives da prata) trouxeram uma tomboladeira, dizendo que era da prata que daquella serra tiraram".

Tudo, porém, boatos. Só boatos. De S. Paulo, no entanto, contrapondo-se aessas vagas murmurações, vinham informes positivos de descobrimento de minas.Os paulistas, apregoavam-no mil bocas, começavam a achar ouro de lavagem portoda a parte. Esse ouro chegava às mãos do governador em amostras quefuzilavam. Jà os dois Sardinhas, pai e filho, haviam topado com as férteis minas doJaraguà. Só o velho Afonso Sardinha, ao morrer, confessara ter deixado nas suasterras, enterrado em botelhas de barro, a enormidade de oitenta mil cruzados deouro. "Os paulistas, por esse tempo (conta-o Taques) estimulados de amor próprio,e em zelo do seu Rei, entraram na deligencia de descobrir minas de ouro, e deprata, e de ferro, e de outros metaes. Deo-se conta de seus descobrimentos a D.Francisco de Souza..."D. Francisco, ao receber tão ridentes notícias, fez partir pressurosamentepara o sul a Diogo de Laço, com mineiros de capacidade, a fim de ajudar ospaulistas na pesquisa dos veeiros.Foi quando, vindo dos recuados sertões de S. Paulo, surge na Bahia certomateiro de que a história não guardou o nome. Era, certamente, um cabo debandeira. Esse cabo, assim obscuro, procurou a D. Francisco de Sousa. E meteu-sea narrar-lhe umas longas histórias que ouvira na sua jornada, histórias de índios,muito encantadas, muito deslumbradoras, sobre uma serrania branca,resplandecente, que dizia existir là pelo sul, bem ao sul, nos emaranhados sertõespor onde andara...— Serrania branca? Resplandecente?— Sim, senhor governador! Uma serrania branca e resplandecente. Correvoz que hà muita prata nas socavas. Os índios chamam essa serrania deSabarabuçu...

Sabarabuçu? Mas Sabarabuçu era a serra confusa de nome estranho, donde aqueles antigos aventureiros apregoavam haver tirado a tomboladeira de prata. E D. Francisco de Sousa, tornado subitamente sério, pôs-se a escutar, de ouvido atento, as extraordinàrias falas do mateiro sobre a extraordinària serrania daprata.

Escutando-as acudiam-lhe de certo à memória as célebres narrativas atiçadoras de Walter Raleigh, o viageiro estrepitoso do EL-DORADO. Nessas narrativas, que corriam barulhentas o mundo inteiro, relatava o capitão inglês que, certa feita, dera de chofre com grande e esplendorosa montanha, curvejando nocéu, toda alva e de prata. "... nós nos contentamos de vêl-a a distancia; e nos pareceu uma torre branca, muyto alterosa. Não creio que haja no mundo outra semelhante.

Barrêo contou-me coisas maravilhosas dessa montanha, onde hà muyta prata que resplende de longe ao sol". Levados pela bizarra lenda, que se transplantou para os sertões brasileiros, os sertanistas baianos, muito pasmados, também contavam: "toda a Serra se compõe de huma terra tam branca, e tam fina como a cal; e, segundo os signaes da terra onde se acha a prata por este signal mostra que a terra o tem..." Eis porque, dentro do seu paço, enquanto ouve o mateiro narrar-lhe as encantadas histórias da Sabarabuçu, D. Francisco de Sousa, chocado vai dizendo de si para consigo:

— Esta Sabarabuçu é a serra branca! Esta Sabarabuçu é a serra da prata17! [Páginas 23 e 34]

E aquela pecha alanceava-o. Prostrava-o. Dentro do Seu Paço, com tão agoniante doraferroada no coração, o miserando governador deu de definhar. Não falava. Não comia.Não dormia. Não queria receber a ninguém. Era pungentíssimo o seu abatimento.Tamanho, tão lancinante, que caiu de cama gravemente enfermo.- Cuidado, senhor Afonso Furtado, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar aprata que o mato esconde, morreram. Não escapou um só!E Afonso Furtado, como todos os demais, foi ferido por aquele deus sem entranhas quevigiava com ciúmes os tesouros da mata brasileira. O sonhador das minas malagouradas, o buscador da prata de Paranaguá e da prata da Sabarabuçu, não resistiu àsmelancolias que o consumiam: amanheceu um dia morto no seu palácio. Sucumbira devexame. Sucumbira, ralado de mágoa, por não haver enviado a Portugal a prata que asua palavra de fidalgo afirmara existir no Brasil. Eis o relato do historiador:"O pouco effeito das delligencias que para o descobrimento das minas de prata fezAffonso Furtado, lhe imprimiu na imaginação o erro de não haver pesado aquella materiana balmança da prudencia, e o receio do desaire que lhe grangeava a sua demasiadacredulidade em negocio de que fizera tanto apreço e segurara com tanta certeza. A estanociva apprehensáo sobreveiu uma profunda melancolia, que, passando a perigosa edilatada enfermidade, lhe acabou a vida". E tal como Rocha Pita, um documento doConselho Ultramarino diz, oficialmente, que Afonso Furtado morreu pelo desgosto queteve em não achar as fatídicas minas que apregoava... "o governador se levara da vozcomum; e fizera grandes deligencias por descobrir as minas de prata, até que o ultimodesengano lhe tirara a vida". Desfecho acabrunhador tiveram, na verdade, as rumorosaspedras brancas de Lemos Conde! Eis porque, com justíssima razão, exclamava umcontemporâneo de tais sucessos: "Lastimosa cousa foi que, com estes penedos, seoccasionasse um tão grande estrondo em Portugal, e, ao senhor Affonso Furtado, amorte..."* * *Ao mesmo tempo em que o insucesso de Paranaguá botava no ânimo de Afonso Furtadoaquela venenosa tristeza que o arrastava ao túmulo, D. Rodrigo de Castel Blancoespumejava cóleras bravias. Que? Pois aquele embusteiro de Lemos Conde - umprovedor-mor! - tivera a deslavada coragem de iludir ao Rei? Ao governador? A elestodos? E iludir com tão impudente e cínico descaro? Ah, destituam esse tratante, já e ]á,da provedoria dos quintos! Prendam o perro! Metam o falsário a ferros! É necessário queo impostor, à vista de toda gente, como escárnio e como exemplo, purgue duramente nocárcere a sua falsidade! Eram terríveis as ordens. Mas não houve que vacilar: LemosConde foi imediatamente destituído do seu cargo. E imediatamente preso. Eimediatamente metido a ferros. Assim, ostentosamente desonrado, transportaram paraSantos o singular provedor. Aí o trancaram num calabouço da fortaleza.Mas D. Rodrigo, aceso em iras fulminadoras, não saciou com aquelas ferezas a suadesatada sanha. E sentenciou que as despesas da jornada fossem todas pagas com osbens do provedor. Por que havia el-Rei de arcar com os gastos daquela jornada?Pagasse-os que a engendrou! E determinou, despoticamente, além da prisão e além daperda do cargo, o confisco geral de todos os teres do povoador de Paranaguá.Executaram-se rigorosamente as ordens do castelhano. E Lemos Conde, tal como AfonsoFurtado, ao se ver assim tombado, desbaratado, confiscado, encarcerado, não resistiu.Um dia...- Cuidado, Lemos Conde, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prataque o mato esconde, morreram... Não escapou um só! [Página 32 do pdf]

... um dia, ao passar diante da porta gradeada do calabouço, o carcereiro depara, caídopor terra. sobre vermelha poça de sangue, o corpo já enregelado do senhor provedor.Que foi? Apenas isto: Lemos Conde, com uma faca de ponta, degolara-se na prisão. Nosseus assentamentos, o velho Taques lá anotou:- "Manuel de Lemos Conde, natural da villa de Borba, que foi provedor dos reaes quintosda fazenda de Parnaguá, em 1691, se degollou por suas proprias mãos, estando preso esequestrado".Findou assim, com esse epílogo sinistro, a história da prata de Paranaguá. Vai agorareencetar-se, com mais ardência, o interrompido romance da Sabarabuçu.

D. RODRIGO DE CASTEL BLANCO

D. Rodrigo de Castel Blanco está em São Paulo. E em S. Paulo tem agora o castelhano um fito só: Sabarabuçu! Para tal, fazendo vir das vilas convizinhas os homens de melhor conselho e de maior experiência, homens anciões e de respeito, bota-se D. Rodrigo com eles a "discernir e rumiar as condições, e tempo mais conveniente, para se pôr em execução a jornada ao cerro da Sabarabussú, no descobrimento da prata".

E isso, lá dizem pitorescamente as atas da Câmara para que de nenhuma maneira haja de aver falta nem estrovo em se conseguir a jornada de Sabarabussú". E a fim de não aver falta nem estrovo, a Câmara de Taubaté, muito generosamente, apressa-se em oferecer índios seus, a fim de irem plantando roças pelo caminho - "para com fasseledade se conseguir o descubrimento da prata".

Mas há em S. Paulo surda animosidade contra o prático de Itabaiana. D. Rodrigo era atrevidamente fanfarrão. Alardeava aos quatro ventos, com muito e jactancioso palavriado, os seus merecimentos e as suas sabenças. Os de S. Paulo, gente rústica, de pouca fala, enlurados naquele burgo de além-serra, ouviamdesconfiados as gabolices do espanhol - do patarata, como o apoda o sisudo Taques.

Detestavam-no. Demais (e aqui, doía-lhes aos paulistas este ponto) eles, os de S. Paulo,ao se barafustarem por essas serranias afora, à frente de suas bandeiras, lá iam à custado seu bolso, arruinando as próprias fazendas, sem pesarem de uma só placa ao tesourode el-Rei. D. Rodrigo, no entanto, ali estava à tripa forra, vivendo como um senhor domfidalgo, com os custos da jornada largamente pagos, e, por cima, a abocanhar do erárioreinol a enormidade de seiscentos mil réis. Além de tais larguezas, agora, para se ir àSabarabuçu, manda-lhe ainda o Príncipe abonar, como ajuda, mais a gorda tença dequarenta mil réis! Aquilo assombrava e irava os de S. Paulo.

Ao mesmo tempo, num contraste gritante, lá, pelas tredas matarias dos Cataguazes, há sete anos já, padecendo misérias sobre misérias, suportando desgraças e ruínas inenarráveis, dizimado, abandonado, estropeado, desbaratado, mandando vender, para se sustentar, as últimas jóias das filhas, Fernão Dias Paes Leme andava a romper com heroísmos trágicos, desesperadamente, aquelas serranias bárbaras onde se acoutavam as esmeraldas e a prata.

D. Rodrigo, porém, indiferente às mal-querenças que o farpoam, vai com os seus seiscentos e quarenta mil réis, aprestando sossegadamente a sua bandeira. Apresta-a. E ei-lo afinal pronto. Um dia, com muito negro e muito bugre, cargueiros e cargueiros atopetados de mantimentos, o velho mineiro Álvares Coutinho numa rede, carregado a ombro, D. Rodrigo de Castel Blanco lança grandiosamente os seus homens na trilha do caçador de esmeraldas. Vai, tal como o potentado paulista, por aquelas negrejantes rechás de além Mantiqueira buscar a nebulosa, a terrível mas sempre fascinante serra branca da prata. Sabarabuçu! Sabarabuçu! E a bandeira abalou. [Página 33 do pdf]

- Cuidado, D. Rodrigo, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que omato esconde, morreram... Não escapou um só!

ESMERALDAS

Súbito, na vilota de S. Paulo, estrondeja esta ridente notícia fragorosa: Fernão Dias Paes Leme topara com as esmeraldas! Não topara o destemeroso cabo com a tão buscada Sabarabuçu, e nem com a tão buscada prata, é bem verdade. Mas topara com as esmeraldas. Sim, lá por aqueles cerradões ermos dos Cataguazes, o velho rompedor-demato descobrira enfim as pedras verdes! Descobrira-as à beira da lagoa Vapabuçu. Descobrira-as, apanhara a terçã, e, por fatalidade, morrera subitamente da febre ruim.

O filho do bandeirante, Garcia Paes, ao receber do pai moribundo as esmeraldas, botara as num saquinho de chamalote, cosera-o, mandara-o com sofreguidão a D. Rodrigo de Castel Blanco. Quê? A D. Rodrigo de Castel Blanco? Os de S. Paulo ouviram, de punhos cerrados, indignadamente, a notícia destemperada.

Como teve Garcia Paes coragem de entregar ao patarata a descoberta de Fernão Dias? Pois não via Garcia Paes que D. Rodrigo iria agora, com as esmeraldas nas garras, apregoar perante a corte que fora ele, D. Rodrigo, e não Fernão Dias, o achador das pedras? Aquilo atiçou na vilota iras assanhadas. O padre João Leite, irmão de Fernão Dias, correu à Câmara com o seuprotesto:

"Eu, o Padre João Leite da Silva, por mim e como irmão do defuncto, o Capitãm Fernão Dias Paes, descobridor das esmeraldas, e em nome da viuva, sua mulher, Maria Garcia, requeiro a suas mercês, huma e muytas vezes, da parte de S. Alteza, q. Deus guarde, que atalhem pelos meios convenientes, a D. Rodrigo Castell Branquo os intentos que tem de apoderar-se das minas de esmeraldas q. o dito meu irmão descobrio..."

A terreola piratiningana alvoroçou-se toda. Andavam pelo ar boatos azedados. Propalavase até que... Súbito, no esfervilhar daquelas zangas, rompe por S. Paulo adentro, estupidificando-o, esta mensagem aterradora:

- Borba Gato, o genro de Fernão Dias, assassinara nos Cataguazes a D. Rodrigo de Castel Blanco! Borba Gato? Ninguém queria acreditar! Apesar de sua cólera, as gentes de S. Paulo não haviam chegado a ponto de cogitar em tão sanhuda ousadia. Sofrear, com protestos e com embargos, diante das justiças, as possíveis raposias de D. Rodrigo, vá!

Mas assassiná-lo? Assassinar o enviado do Príncipe? Era demasia a que vassalos, por mais alevantados, não se atreviam com ligeireza. No entanto, por desgraça, aquela sacolejante notícia era a verdade nua: Borba Gato, genro de Fernão Dias, assassinara a D. Rodrigo de Castel Blanco! Como?

Os dois homens, depois da morte do bandeirante paulista, tiveram, no sertão do Paraopeba, um encontro desafortunado. Borba Gato fora sempre de ânimo perigosamente assomado. D. Rodrigo de ânimo perigosa mente desabrido. Um estava, como todos os paulistas, assanhado contra o espanhol fanfarrão que recebera as esmeraldas.

O outro, como todos os renóis, prevenidíssimo contra os paulistas altaneiros que os tratavam de igual para igual. O encontro deles, por isso mesmo, foi áspero. Áspero e breve. Apenas duas ou três frases cortantes: e Borba Gato, num arranco, ali, em pleno sertão, assassina tresloucadamente, diante dos dois séquitos pasmados, o enviado de confiança do Príncipe!

Não podia suceder, como remate à jornada das pedras verdes, acontecimento maisarrepiador. Tinha ali um epílogo de sangue, e, mais do que epílogo de sangue, finalizavase em crime de lesa-majestade, a retumbante entrada do caçador de esmeraldas.Bem sabia Borba Gato, diante daquela fatalidade, do destino cru que o aguardava. Bem sabia das vinganças que iriam desabar sobre a sua cabeça! Por isso não esperou queestalasse contra ele a sanha régia: naquele mesmo dia, fugindo às justiças, o paulistaembrenhou-se às correrias por aqueles bosques asselvajados de além-Mantiqueira. Foiviver, segregado dos homens, como hirsuto bicho de mato, dentro do sertão terrificantedaquelas paragens brutas.BORBA GATORodou o tempo. O sonho da prata esfriara. Portugal, contudo, tentou ainda mais umesforço no sentido da descoberta das serras tão desejadas.É que o soberano recebera longo relatório do governador Paes de Sande em que esteassegurava não se ter ainda descoberto a prata de Paranaguá e de Sabarabuçu por doismotivos:

1o) porque não se haviam prometido aos paulistas todas aquelas grandes honras e todasaquelas grandes mercês, assim como aqueles postos de mando no governo da suarepública, de que os mesmos paulistas eram mui gulosos. E isso ainda com a promessa,importantíssima para os paulistas, de que "continuaria a sua Republica florente nasqualidades e na riquezas, capaz de vir a ser a Villa de S. Paulo a cabeça do Brasil".

2o) porque não pode descobrir nem entabolar minas que não sabe o que el-las sãm. Ora,continuava o governador, muito azedo, "esse D. Rodrigo de Castelbranco nunca foiescrutador ou bruxulla; nunca foi mineiro, nunca seguio betas nem proffundou estados;nunca foi senhor de minas, nem teve officio de temperar a pedra moida; e se fallava emalguns termos, era pellos ouvir e não pellos praticar".Ouvindo o Conselho Ultramarino, um dos conselheiros foi logo dizendo que, quanto a D.Rodrigo, talvez "este não ouvesse tido aquela experiencia e sciencia que no papel sesupõe necessaria, mas que tinha bastante deligencia da materia. Pois, estando eu naBahia lhe vy fazer diferentes os ensaios em pedras da serra de Tabaiana, e tambem vyque dos ensaios tirou prata". "E quanto ás promessas dos paulistas, achava, semrestrição, medida muy adequada, pois a ambição dos homens tudo facilita, e, com isso,não se despresava deligencia tão util como essa". E acrescentava ainda que emSabarabuçu e em Itabaiana devia realmente haver prata, portanto - "Tabaiana eSabarabussú concorrem, debaixo da mesma altura e parallello, com o cellebrado cerro doPotosy, que lhe fonte de prata inexausta que tem inundado as quatro partes do mundo. Ecomo se conjectura que sendo a producção de todos os metaes effeito do callor eactividade do sol, pela egualdade do parallello participarão aquellas serras das mesmasinfluencias".

O Rei, tendo tudo visto e examinado, mandou ao seu governador uma carta em que dizia:"Antonio Paes de Sande, Am.0 Eu, el-Rey, vos envio muyto saudar. Mandando ver o queme reprezentaste em hum papel sobre as minas de ouro, e de pratta de Pernagoá,Tabahana, e Serra do Sabarabussú, me pareçeo recommendar-vos a execução doarbitrio........ dando-vos a faculdade para que, em meu nome, possaes propor, e dar todasas honras e mercês que deveis prometter aos paullistas; e, feita a delligencia, me dareisconta do que tiverdes disposto, e obrado, para que com a verdadeira noticia, ou sealcance o dezengano ou se confirmem as mercês..." 25

Mas é exatamente por esse tempo - 1695 a 1700 - que o Brasil inteiro se enche da fama súbita das minas de ouro. Naquelas estrondosas minas de ouro, tão abundantes, que os paulistas haviam afortunadamente descoberto nos Cataguazes. Quanta mina, Senhor! É a do Ribeirão do Carmo, é a de Ouro Preto, é a da Pitangui, é a do Ribeirão do Garcia... Ecos de descobrimentos novos, de catas inesperadas, de veeiros que rompiam improvisamente, estrugiam agora de todos os quadrantes do sertão. Tantos, tão rumorosos, que o governador Artur de Sá e Menezes decidiu-se a ir, em pessoa, ver de perto aquelas riquezas que brotavam a flux no rústico El-Dorado. Urgia, porém, antes de qualquer outra medida, tratar da abertura dum caminho, expedito e fácil, que ligasse com rapidez a região das lavras à cidade do Rio de Janeiro. Quem, com prática de sertão,poderia faze-lo? Os paulistas. Eis porque Artur de Sá foi entender-se com os sertanistasde Piratininga. E entender-se particularmente com aquele sertanista de prol, amigo doRei, filho de Fernão Dias Paes Leme: Garcia Paes.

Em S. Paulo, certo dia, Garcia Paes procurou o governador. Procurou-o em sigilo. E, asós os dois, disse o filho do caçador-de-esmeraldas ao procônsul reinol:- Vosmecê conhece bem aquela desgraça que arruinou a vida do meu cunhado...- Borba Gato?- Borba Gato!- Conheço bem o caso, Garcia Paes. E então?- Então, senhor governador, depois do desastre, e como Vosmecê de certo já ouviu dizer,Borba Gato sumiu. Por muitos anos não deu ele notícia do seu paradeiro. Vosmecê nãopode avaliar o desespero que é para a minha gente a perda de Borba Gato! Nenhumparente se conforma em saber que o meu cunhado, homem reto, companheiro firme demeu pai, vive fugido da justiça como criminoso. A mulher dele, que é a mana Maria Leite,saiu de S. Paulo e foi morar em Taubaté. Instalou-se no lugar chamado Paraitinga, que éboca de sertão, fica rente da estrada que vai para as lavras. A mana pousou nuns camposdaquela paragem, ergueu casa, e ficou-se ali, que é perto dos Cataguazes, na fiúza dever o marido um dia aparecer. Mas tudo baldado! Passaram-se anos e anos sem queBorba Gato desse notícia de si...Artur de Sá ouvia em silêncio. Garcia Paes, com a sua singeleza cabocla, continuou adesenrolar pinturescamente a rústica história do cunhado:- Vinte anos andou Borba Gato por aquela mataria como um bicho. No fio desses vinteanos, corre pra cá, corre pra lá, encontrou ele uns bugres de boa avença, da naçãochamada piracicava, que o receberam como amigo. Borba Gato arranchou-se entre eles.E viveu como bugre no meio desses bugres. Tornou-se até o maioral desse gentio. Ora,faz pouco tempo, numa tarde de vento grosso e chuva braba, surge em casa da mana umhomem barbudo, cabeça branca, que entra pela casa de sopetão. Uma rapariguinha depouca idade, que já é filha duma filha da mana, estando por acaso na sala-de-janta, aoreparar no estranho que vem varando, sai a gritar pela casa:- Um homem barbudo tá aí, mãe! Um homem barbudo tá aí, mãe!Acode a mãe da menina a ver o que é. E ao dar com o velho, ali, naquele lusco-fusco dechuvarada, vestido de couro, botas, um arco de bugre na mão, a moça também seamedronta. E corre, com os olhos saltados, pelo quarto da mana Maria adentro:- Tá aí um homem barbudo, mãe!- Um homem barbudo?- Barbudo, vestido de couro, com um arco de bugre...A mana estremeceu. Sentiu uma voz lá dentro que dizia: é ele! E veio às pressas aoencontro do homem que a moça e a menina não sabiam quem era. Não se enganara ocoração da velha! Na sala, mal vê o chegadiço, a mana solta um grito de festa:- Borba Gato!Era, de fato, Borba Gato. A filha, que ele deixara criança, não o pudera reconhecer. A netinha, essa nascera e crescera enquanto o avô andava pelo mato.Mas a mana Maria reconheceu logo o marido. E os dois velhos abraçaram-se ali,chorando, depois de vinte anos de separação.Artur de Sà escuta de muito boa sombra o filho de Fernão Dias. E torna-lhe:— Eu soube dessa volta de Borba Gato ao povoado, Garcia Paes. Nãosoube assim com essas miudezas. Mas soube. E como tenho em grande conta aBorba Gato, nem o quero mal pelo crime que praticou, mandei ordens a ele para quevoltasse ao sertão e se esforçasse por descobrir a serra do Sabarabuçu. Descobrir aSabarabuçu. Vosmecê bem o sabe, é o maior serviço que Borba Gato pode prestarao Rei. E, com tal serviço, o caminho mais certo para que Borba Gato obtenha operdão do crime. [Páginas 34, 35 e 42 do pdf]

E assinou a carta-de-seguro. Com aquela carta, jà conseguia o foragidoquase completa liberdade: a comarca dos Cataguazes, naqueles tempos, ia dossertões da Mantiqueira aos sertões do Peru!No mesmo dia, partindo a toda pressa para a banda das minas, um própriolevava a Borba Gato a palavra e o papel do governador.SABARÁArtur de Sà partiu, com largo séquito, a caminho dos Cataguazes. Alcançouas minas de ouro. Aí legislou. Aí deu instruções. Ai assentou os lineamentos da vidaadministrativa daqueles povoados nascentes. Feito o que, meteu o governador acomitiva de novo pela terra adentro. Là seguiu em busca de Borba Gato.Foi em pleno sertão, ao pé de àsperos morros abaulados, que um dia, comgrande e bulhenta alacridade, encontraram-se afinal os dois homens. Artur de Sà,mal apeado do seu macho, avança de braços abertos para o assassino de D.Rodrigo de Castel Blanco:— Deus vos salve e guarde, Borba Gato!— Deus vos salve e guarde, senhor Artur de Sà e Menezes, governador detodos nós!

Artur de Sà, efusivo, num gesto cavalheiroso, aperta na sua mão, com força, a mão cerdosa do criminoso.

— Aqui estou, Borba Gato! Vim ver a serra do Sabarabuçu de Vosmecê descobriu...
— A serra do Sabarabuçu senhor governador, é aquela que ali esta curvejando no céu... — diz o sertanejo apontando com simpleza uns morros que se alteavam à distância.

Nada de extraordinário na serrania ao longe! Não era branca, nem resplandecente, nem de prata. Uma serrania como todas as serranias...
— Aquela? Pois é aquela, Borba Gato, a Sabarabuçu?
— Venha, senhor governador, venha daí comigo...

Artur de Sà, guiado pelo paulista, envereda-se por estreita picada aberta no mato. Ao fim do jornadeio, mal saído do arvoredo, o governador estaca: nas barrancas dum ribeiro que serpenteia perto, magotes de índios mansos, a bateia na mão, estão a lavar areias e cascalhos.

— Ouro, Borba Gato?
— Ouro, senhor governador; ouro!
E diante da surpresa de Artur de Sà:

— Os índios destas paragens, a uma boca só, chamam àquela serra, que està ali tapando o horizonte, de Serra do Sabarabuçu. E Sabarabuçu, como Vosmecê vê, não é nenhuma serra branca e resplandecente. A Sabarabuçu é uma serra de ouro! Veja, senhor, veja o ouro sem conta que brota dessas areias... [Página 44]

Artur de Sà e Menezes, pasmado, bota olhos coruscantes no bojo daquelasgamelas de pau. Em todas elas, com esbanjada fartura, ia largo faiscar de granetesdourados. Quanto ouro!E o paulista:— Quis Deus, senhor governador, que eu descobrisse estas minas. Veja V.Excelência os grãos que vêm a cada bateada! É um nunca acabar...Artur de Sà contempla aquilo. Examina os granetes. Vai de bateia em bateia.Não hà dúvida: a Sabarabuçu não era serra e prata; era serra de ouro! E ogovernador, diante de todos, pausado e solene:— Borba Gato! El-Rei, nosso senhor, certamente saberà galardoar, comlarga grandeza, o serviço que Vosmecê acaba de prestar à sua real fazenda. Maseu, desde jà, em nome de Sua Majestade, proclamo aqui, alto bom som, para quetodos saibam: Vosmecê Borba Gato, està perdoado! E ordeno que faça, de hoje emdiante, sobre o assassínio e D. Rodrigo de Castel Blanco, perpétuo silêncio.Naquele momento, diante de Artur de e Menezes, Borba Gato, o criminosoforagido, aquela bela, fascinadora e romântica figura de sertanejo, tem a alta missãohistórica de revelar a serra encantada do Sabarabuçu. Sim, revelar a Sabarabuçu edesfazer a quimera da prata. Mas nem só desfazer quimera risonha: Borba Gato,com o achado da mirífica serra lendària, ajunta às riquezas do Brasil, que nosCataguazes de súbito se desvendaram, aquelas ricas e abundantíssimas lavras deouro, tão barulhentas como as do Carmo e de Ouro Preto, que são hoje conhecidas,não pelo seu velho e selvagem nome de Sabarabuçu, mas apenas por este apelidosimplificado:

— Sabarà!

Morreu ali, com o ouro de Sabarà, a ambição escandente da prata. Mas queimporta a prata? Bem mais do que as minas albentes, bem mais do que a riquezaperecível dos tão buscados veeiros, valeu, para a penetração do nosso escuro Brasiladolescente, a lenda, tão linda e tão terrível, daquela imaginària montanha branca.Valeu, bem mais do que a prata, para a posse do Brasil, a lenda, ofuscante ealucinadora, que teve o condão màgico de atrair, com o seu facho pérfido, homenssem conta para os arcanos mais abruptados da terra selvagem. Graças ao fràgilengodo, graças à quimera gentilíssima, os fundadores da nossa Pàtria, aquelesduros sertanejos primitivos, tostados e brutais, ciclopes vestidos de couro,entranharam-se adoidados por essas hirsutas brenhas afora, galgaram serraniasaspérrimas, vadearam rios encachoeirados, padeceram fome e sede, arrostaramferas e paludes — suaram, empobreceram, desgraçaram-se, morreram, mastracejaram na carne virgem da terra do pau-de-tinta, com sulcos de sangue, essagrandiosa e rústica ilíada nacional: a conquista do território. [Página 45]

No final do livro, Plínio Ayrosa (1895-1961), especialista em etimologia de nomes de origem tupi, esclarece o significado dessa palavra influenciou muitos dos eventos registrados nos primeiros 300 anos da colonização:

MONTANHA GRANDE QUE RESPLENDE

Se você soubesse como é perigosa a tarefa de dissecar termos e frases tupis; si você soubesse como são ferozes os tupimaniacos; se você soubesse como são escorregadias as bases da etimologia selvagem, positivamente você não me pediria que arriscasse uma flechada na celebre “Sabarabussú”...

Enfim, vencido por sua dialéctica, esqueço-me dos riscos: e aí vão algumas palavras, sem brilho e sem valor, a propósito da lendária expressão. “Sabarábossú”, “Sabaráboçú”, “Saberaboçú” ou “Çaberabossú”, para nós, faiscadores de raízes tupis, não se apresenta com aquela limpidez que seria de desejar; ha, envolvendo as suas sílabas, uns véus que, apesar de diafanos, não permitem visão clara da verdade em sua plena nudez.

Veja você aquela mudançasinha do segundo a em e, dando Saberá em lugar de “Sabará”. Ter-se-ia dado a permuta por simples capricho fônico de nossa gente? Haverá ali dente de coelho? Não precipitemos os acontecimentos... Arme-se você de paciência. E ouça-me. Iremos naturalmente por partes. Devagar... A expressão “Sabarabuçú”, como se escreve e pronuncia hoje, pode, logo á primeira vista, ser dividida em duas partes: “Sabarab” e “ossú”.

Quanto a este “ossú” que ás vezes é “açú” e “assú”, “oçú”, “guaçú”, “guassú” e “goassú” ou mesmo simples “çu”, sabe você e também todos, significa: grande, volumoso, massudo, pesado, cheio, carnudo, torrencial, e mais, quando funciona como sufixo, dá sempre ao tema ideia de grandeza material. Isso é facto certo e pacifico. Deixemos, portanto, o “ossú” em absoluta paz até segunda ordem.

Quanto ao “sabaráb” ou “çaberáb”, é de toda conveniência não perder de vista aquele modesto “b” final, e lembrar a ocorrência frequente de “Çaberáb” por “Sabaráb” em papeis antigos. O “b”, é possível que ali figure com funções meramente eufônicas; é possível, mas não é certo.

Ha inúmeros exemplos de casos idênticos sem b: “Paraguassú”, “Caáguassú”, “Turiassú”, etc. Claro que poderíamos dizer “Sabaraguassú”, ou “Sabaráçú”, se o “b” representasse apenas um som de ligação; isso não se dá, no entanto, porque não há dificuldade alguma em pronunciar a tal palavra sem “b”.

Esse “b”, meu querido amigo, é o rabo do gato mal escondido... é a letra índice de verbo adjectivável com tantos outros da língua geral. “Barab” não é senão “beráb” ou “berába” que diz: brilhar, fulgir, resplandecer ou brilhante, fulgido, e resplandecente.

Ora, ai está! Se “heráb”, é termo autônomo, “saberáb” ou “çaberáb” deve ser subdividido ainda como expressão composta de “sá” ou “çá” e “beráb”. “Barab” é “beráb” ou “berába” mesmo; vejamos o que é “çá” ou “sá”. Ao primeiro exame parece ser simples contracção de “eçá”, olhos, aliás muitíssimo usada, mormente em compostos, como nos diz o sábio Baptista Caetano.

E parece, realmente, porque se adapta á frase dando-lhe sentido perfeito e natural: “çá-beráb-oçú”, ao pé da letra é olhos brilhantes grandes ou olhos grandes refulgentes. É olhar de quem se espanta, o olhar grande, resplandecente e largo de quem, num ímpeto de satisfação ou de terror, vê mais do que devia; é olhar-exclamação. Mas não comecemos a fazer literatura.

“Sabarábossú” é um toponimo, lembra a celebre montanha que seduziu gente sensata e pratica. Se essa gente abria os olhos, num misto de alegria e de alucinação ao ver as riquezas do sertão, não nos compete indagar; mas em verdade, não seria descabida que o toponimo tivesse em sua composição um “çá” que fosse sómente “çá” olho, olhos... Os diamantes, as pedras brilhantes comparavam-se antigamente, com frequência, a olhos.

Isto é sabido. Em um dos muitos documentos decorrentes da aplicação do Bando de 19 de julho de 1734, publicado no Tijuco ao som de caixa, por entre aquelas já muito exploradas praxes tabeliões, diz-se que um cidadão, pai de família, com mulher a filhos de tenra idade, pois foi condenado “por ser achado em seu poder um olho de mosquito”.

Esse olho de mosquito era um pequeno diamante de tamanho insignificante. Cousas e expressões da época, dirá você, mas o olho lá está! Logo não haveria nada de reprovável si traduzíssemos “Sabarabossú” por olho brilhante grande ou, melhor: olham brilhante.

Mas..., e nesse mas é que começa uma nova historia, a historia do toponymo. Você conhece a historia do toponymo, porém façamos de conta que não conhece: era uma vez, no “tempo de antigamente” uma serra que se chamava “Taberábossú” ouça bem, “Taberábossú”! O nosso “beráb” ai está, o nosso “ossú” também, mas o nosso “çá” ou “sá” é “tá”. Ora, esse “tá”, de antigamente, não pode deixar de ser “itá”, a pedra, as pedras. Tudo continua a correr, como você vê, lisamente, ás mil maravilhas.

Si você duvidar do argumento - tempo antigo - eu garanto, sob palavra, que os papeis velhos, que os documentos insofismáveis dizem “Taberabossú”. Registrada essa grafia, e garantida por mim, pode voc~e facilmente dizer: “Sabarabossú” - “Saberábossú” - “taberábossú” - “itáberábossú”. E mais: itáberábossú itá + beráb + ossú. “Itá” é pedra, “beráb” é brilhante e “ossú” é grande, penedo resplandecente, serra fulgida, montanha-grande-que-resplende você diz - exatissimamente!

Si para umas pedras brilhantes corriam como doidos os nossos homens de outrora ali está “itáberáb”; si essas pedras eram grandes ou si na vertigem dos sonhos, deles, se transformavam em montanhas, ali está “itáberábssú”. Nada mais do que isso, simplesmente isso.

Todas aquelas historias complicadas de olhos, de “bb” e de permutas, de corruptelas e de euphonias, não passam de “chansons du temps jadis”. Hoje com os documentos, com os “Theodoros Sampaios ”, com cursos offciais de tupi, não ha mais casos insolúveis, tudo se põe em ordem de marcha. E por hoje basta! Siga para frente meu caro romancista, siga para a sua “Sabarabussú”, que é montanha encantada da gloria.

E não se esqueça deste irumoguára que aqui fica na tába antiga, faiscando etimologias sem brilho e sem côr...Seu, muito seu.





SEGUNDA PARTE - Sabarabuçu
"MONTANHA-GRANDE-QUE-RESPLENDE"

1591... D. Francisco de Sousa, Senhor de Beringel, é o governador-geral do Brasil. A essa época, pela Bahia, anda muito aceso aquele teimoso sonho escaldante das minas de prata. Està Melchior Dias no mais agudo do seu romance. Vai senão quando, pela terra do pau-de-tinta, principia a esvoaçar esta palavra selvagem: Sabarabuçu. Sim, dum momento para outro, como soprada por invisível bruxo, ecoa no Brasil, pela primeira vez, a estranha palavra màgica. Sabarabuçu!

Aquilo, na língua do bugre, queria pitorescamente dizer: montanha-grande-queresplende15. E a palavra cabalística tomba, radiosa e tentadora, na crendice ingênua do país infante. Tomba. Avulta. E, avultada, incendeia logo todos os ânimos.

Invade todos os povoados. Estronda por todos os ares. — Sabarabuçu! Sabarabuçu! Tão singular palavra, não hà dúvida, essa tão saborosa montanha-grandeque-resplende, é o que vai criar, naquele cândido Brasil que alvoreja, umas das suas lendas mais ruidosas e mais fascinadoras.

Palavra que em breve se tornarà miragem lampejante, atràs da qual, irrefreàveis e sôfregos, se atufarão pelosmatagais bandos de sertanejos visionàrios. Palavra que vai inspirar, nessa àspera arremetida cabocla, que foi o desbravamento inicial do Brasil, bela e aventureira pàgina de feitos selvagens. Pàgina rústica, sim, mas pàgina que irà ajuntar-se com lustre, e grandiloquamente, a essa nossa bravia e fúlgida epopéia sertaneja: aconquista do território.

Como apareceu a curiosa quimera? Assim:D. Francisco de Sousa não acreditava muito nas minas de prata de MelchiorDias. Para D. Francisco (é o que se depreende nítido dos seus atos) as riquezasmetàlicas do Brasil não estavam na Bahia. Estavam em S. Paulo. Ao sul e não aonorte. E tinha bem razão o governador para pensar assim. Na Bahia, desde tempos,andavam os desbravadores com suadas canseiras a encravar-se pelos matos embusca de metais. Mas andavam baldadamente. Nada de ouro, nada de esmeraldas,nada de prata...É verdade que, jà por esse tempo, trazidos pela boca de uns aventureiroschegados do sertão, soaram aos ouvidos de D. Francisco de Sousa (e este por suavez os enviara ao Marquês de Alenquer) certos boatos de uma serra que havia aosul, bem ao sul, muitíssimo prenhe de riquezas. Era uma serra confusa, de nomeestranho, onde diziam existir prata. "... noticias de uma serra chamada Sabarabussú,donde os moradores que a ella foram (entre elles um ourives da prata) trouxeramuma tomboladeira, dizendo que era da prata que daquella serra tiraram"

Tudo, porém, boatos. Só boatos. De S. Paulo, no entanto, contrapondo-se aessas vagas murmurações, vinham informes positivos de descobrimento de minas.Os paulistas, apregoavam-no mil bocas, começavam a achar ouro de lavagem portoda a parte. Esse ouro chegava às mãos do governador em amostras quefuzilavam. Jà os dois Sardinhas, pai e filho, haviam topado com as férteis minas doJaraguà. Só o velho Afonso Sardinha, ao morrer, confessara ter deixado nas suasterras, enterrado em botelhas de barro, a enormidade de oitenta mil cruzados deouro. "Os paulistas, por esse tempo (conta-o Taques) estimulados de amor próprio,e em zelo do seu Rei, entraram na deligencia de descobrir minas de ouro, e deprata, e de ferro, e de outros metaes. Deo-se conta de seus descobrimentos a D.Francisco de Souza..."D. Francisco, ao receber tão ridentes notícias, fez partir pressurosamentepara o sul a Diogo de Laço, com mineiros de capacidade, a fim de ajudar ospaulistas na pesquisa dos veeiros.Foi quando, vindo dos recuados sertões de S. Paulo, surge na Bahia certomateiro de que a história não guardou o nome. Era, certamente, um cabo debandeira. Esse cabo, assim obscuro, procurou a D. Francisco de Sousa. E meteu-sea narrar-lhe umas longas histórias que ouvira na sua jornada, histórias de índios,muito encantadas, muito deslumbradoras, sobre uma serrania branca,resplandecente, que dizia existir là pelo sul, bem ao sul, nos emaranhados sertõespor onde andara...— Serrania branca? Resplandecente?— Sim, senhor governador! Uma serrania branca e resplandecente. Correvoz que hà muita prata nas socavas. Os índios chamam essa serrania deSabarabuçu...Sabarabuçu? Mas Sabarabuçu era a serra confusa de nome estranho,donde aqueles antigos aventureiros apregoavam haver tirado a tomboladeira deprata. E D. Francisco de Sousa, tornado subitamente sério, pôs-se a escutar, deouvido atento, as extraordinàrias falas do mateiro sobre a extraordinària serrania daprata. Escutando-as acudiam-lhe de certo à memória as célebres narrativasatiçadoras de Walter Raleigh, o viageiro estrepitoso do EL-DORADO. Nessasnarrativas, que corriam barulhentas o mundo inteiro, relatava o capitão inglês que,certa feita, dera de chofre com grande e esplendorosa montanha, curvejando nocéu, toda alva e de prata. "... nós nos contentamos de vêl-a a distancia; e nospareceu uma torre branca, muyto alterosa. Não creio que haja no mundo outrasemelhante. Barrêo contou-me coisas maravilhosas dessa montanha, onde hàmuyta prata que resplende de longe ao sol". Levados pela bizarra lenda, que setransplantou para os sertões brasileiros, os sertanistas baianos, muito pasmados,também contavam: "toda a Serra se compõe de huma terra tam branca, e tam finacomo a cal; e, segundo os signaes da terra onde se acha a prata por este signalmostra que a terra o tem..." Eis porque, dentro do seu paço, enquanto ouve omateiro narrar-lhe as encantadas histórias da Sabarabuçu, D. Francisco de Sousa,chocado vai dizendo de si para consigo:— Esta Sabarabuçu é a serra branca! Esta Sabarabuçu é a serra da prata17!

17 "... uma serra Sabarabussú, reputada muyta rica em prata. D. Francisco de Souza recebeu noticias della estando ainda na Bahia. Esta circumstancia é interessante por indicar que a primeira noticia da celebre serra tinha sido levada á Bahia por algum explorador, ou bandeira, que de S. Paulo varasse pelo sertão até a Bahia". OrvilleDerby. [Páginas 23 e 24]

A CAMINHO DE SÃO PAULO

E dizia com razão. Pois, com o prodigioso relato daquela serrania branca, que os índios chamavam de Sabarabuçu, apresentou o mateiro ao governador uns pedaços de pedra, bastante curiosos, que trazia escondido com exageradas cautelas nos seus alforges de couro. "... D. Francisco (conta o holandês Glimmer no seu preciosíssimo depoimento) recebeu daquelle sertanejo um certo metal, extrahido, segundo dizia, dos montes Sabaraoson". Mas Sabaraoson, bem se vê, é simplesmente corrutela, em làbios flamengos, da palavra Sabarabuçu.

Aquele metal, pois, extraído da Sabarabuçu, D. Francisco ordenou que os pràticos imediatamente o examinassem. Vai então — que radiosa surpresa — os pràticos encontraram prata (prata pura!) naquelas amostras rústicas. "Tendo sido examinado pellos entendidos em mineração (là continua Glimmer) reconheceu-se que esse mettal continha, em um quintal, trinta marcos de prata pura". Trinta marcos de prata pura! D. Francisco, diante da golpeante evidência, não quis mais ouvir falar de Melchior Dias, nem de Itabaiana, nem de Jacobina, nem daquelas nevoentas, problemàticas minas da Bahia. Sabarabuçu, sim! Sabarabuçu é que era a montanha da prata! E o Governador não se contenta em ter enviado para S. Paulo, como enviara, a Diogo de Laço com dois pràticos de metais. O governador, com os pedaços de pedra diante dos olhos, e, sobretudo, como resultado dos exames — trinta marcos de prata pura! — resolve passar o governo sem mais delongas, e, com o primeiro galeão que abicasse, partir em pessoa a caminho do sul.

Foi assim que o Senhor de Beringel, dum dia para outro, com espanto da colônia inteira, embarcou alvoroçadíssimo rumo de S. Paulo. Ia fortemente apetrechado para o serviço dos metais. Levava consigo, além de muita gente para minerar, dois alemães que eram dois pràticos de fama: Jacques Oalte e Geraldo Betink18.

Com a comitiva, que era larga e pomposa, aportou D. Francisco em Santos. De Santos, galgando a serra pela estrada do padre José, o senhor governador-geral entrou, circundado por vistosa cavalgada, triunfalmente, no burgo rústico de João Ramalho. Trazia às gentes do Tietê, por entre as galas de sua entrada, como em triunfo, esta notícia coruscante: havia, luzindo naqueles sertões, longe, muito longe, uma serra branca, muito esplendorosa, que se chamava Sabarabuçu. E essa serra era uma serra de prata...

"A lenda da Sabarabussú (diz com razão o eminente Teodoro Sampaio) vae ter agora larga repercussão entre os mamellucos de S. Paulo. Vae ser, por todo o secullo seguinte, o alvo das mais arrojadas expedições sertanejas, conduzidas pelos paullistas, em direcção ao valle de S. Francisco". Grande verdade! Aquela tentadora Sabarabuçu ateou labaredas na alma aventureira do povo bandeirante. E ospaulistas, a partir de então, principiaram a arremeter-se àvidos empós à prata.

ANDRÉ DE LEÃO

Em S. Paulo, mal chegado, D. Francisco de Sousa arma sem tardança duas bandeiras de vulto: a de Nicolau Barreto e a de André de Leão. A bandeira de levada á Bahia por algum explorador, ou bandeira, que de S. Paulo varasse pelo sertão até a Bahia". Orville Derby.18 Betink deu a corrutela Betim, nome de família paulista largamente conhecida. Este Geraldo Betink é o pai de D. Maria Garcia Betim, mulher de Fernão Dias Paes Leme.

www.nead.unama.br26Nicolau Barreto, uma das mais singulares da época, escapa ao fio desta crônica: e bandeira buscadora de ouro. Mas a de André de Leão, essa, pelo saboroso sonho romântico que a guiou, tem um lugar marcado nestas pàginas: André de Leão partiu à procura daquela misteriosa Sabarabuçu, a encantada montanha da prata...... e não perdendo tempo, D. Francisco fez entrar no certão a tropa de André de Leão a sollicitar as minas de prata".

Assim, com a serra branca a bailar-lhe diante dos olhos, o desbravadorbotou a sua tropa de arcos pelo vale do Paraíba afora. Atravessou-o. Alcançou asgargantas do Embaú19. Transpô-las. E, do outro lado, aventuroso e destemeroso,atufa-se o cabo pela escureza daqueles bosques chucros de além-Mantiqueira.Dessarte, dentro da imensidão brutíssima do Brasil primevo, a miragem daprata continuava a realizar o seu destino fulgurante. Sim! Fora a prata, no norte, osonho que tangera os sertanistas a romper as caatingas queimantes da Bahia. Forao sonho que tangera os sertanistas a talar os chãos duríssimos de Sergipe. E éainda agora, no sul, a prata, essa Sabarabuçu enfeitiçada, que, com o seu risonhobruxedo, tange André de Leão a atacar, como rústico visionàrio, as rechãsbraviamente selvosas dos Cataguazes, isto é, o atual Estado de Minas Gerais.André de Leão là foi. Sabarabuçu! Sabarabuçu! Onde estava a serrabranca? Onde? O mateiro correu, compridos meses, pelos dédalos emaranhadosdaqueles socavões bàrbaros. Mas correu em vão. O caçador da prata voltou demãos vazias. Não topou ele com traço sequer daquela arisca Sabarabuçu, tãoapetecida, que là de dentro dos matos, acenava perfidamente aos sertanistas com oescondido tesouro das suas brancas entranhas... Pouco importa o fracasso! A bandeira de André de Leão teve conseqüênciasimensas nesse episódio, fundamental da nossa história, que é o desbravamento do território. Pois foi o buscador da Sabarabuçu — notai-o bem! — quem rasgou a primeira trilha entre o atual Estado de S. Paulo e o atual Estado de Minas Gerais.

Penetradas aquelas brenhas até ali não penetradas, irà, tal como André de Leão, trafegar em breve por elas, varando-as, ao encalço não só da prata, mas também de esmeraldas, a entrada gigantesca de Fernão Dias Paes Leme. André de Leão não encontrou a prata. Fernão Dias não encontrarà a prata, nem as esmeraldas.

Mas o sertão dos Cataguazes, isto é, o Estado de Minas Gerais de hoje, assim desbravado, abrirà dentro em pouco o seio opulento: e é desse seio opulento que hà de jorrar, com desmarcada abundância de caudais, ouro pelo Brasil afora.

Não serà a prata, portanto, não serão as esmeraldas, bem se vê, mas hà de ser o ouro — minas e minas de ouro! — a vitória final daquelas duras arremetidas. E, com o ouro, a conquista e o povoamento do sertão brasileiro.

CUIDADO, D. FRANCISCO DE SOUSA!Não trouxe André de Leão a prata da Sabarabuçu. Mas que significava làisso? Um pequeno fracasso apenas. Outro, mais aventurado, haveria de traze-la!Era questão apenas de se receber da corte ajuda e custeio para tão onerosasjornadas. E D. Francisco de Sousa, que andava entusiasmadíssimo com as riquezasque os paulistas estavam a descobrir, embarcou-se de S. Paulo para Madri(vivíamos sob o domínio da Espanha) e là se foi rogar a Felipe II os recursospreciosos para se incrementar, em S. Vicente, novas descobertas de ouro e prata.Que grandes coisas, em Madri, não teria D. Francisco apregoado do ouro que iria [Página 26]
*"O Romance do Prata" de Paulo Setúbal (Sabarabuçu, serra Sabarabussú)


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