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Carta de José de Anchieta escrita de São Vicente: parte I
27 de maio de 156013/04/2024 23:36:23

AO PADRE GERAL DE SÃO VICENTE AO ULTIMO DE MAIODE 1560 (01)Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente. - Divisão das partes do ano. - Tempestades. - Disputa com um feiticeiro - Enchentes dos rios. - Saída dos peixes. - Boi marinho. - Narração de uma tempestade no mar. - Entrada dos peixes. - Sucuriuba. - Jacaré. - Capivara. - Lontras. - Caranguejos. - Modo indígena de curar o cancro. - Jararaca, cascavel, coral e outras serpentes. - Piolho de cobra. - Aranhas. -Tatoranas - Panteras.- Tamanduá. - Anta - Preguiça. - Gambá. - Ouriços.- Macacos. - Tatu. - Veados. - Gatos monteses, gamos e javalis. - Lhama do Perú. - Bicho da taquara. - Formigas. - Abelhas. -Moscas e mosquitos. - Papagaios, beija-flores e outros pássaros. - Guará e outras aves marinhas. - Aves de rapina. - Anhima. - Galinhas silvestres. - Mandioca e “Yeticopê”. - Ervaviva. - Arvores medicinais. - Pinheiros. - Raízes medicinais. - Pedra elástica. - Conchas e pérolas. - Espectros noturnos ou demônios. - Raras deformidades entre os Brasis. - Criança monstruosa. - Um porco hermafrodita.

A Paz de Cristo seja comnosco

Pelas tuas cartas, que ha pouco nos chegaram ás mãos, vimos, Reverendo Padre em Cristo, que desejas (para que se atenda ao voto e desejos de muitos) que escrevemos acêrca do que suceder comnosco que seja digno de admiração ou desconhecido nessa parte do mundo.

Conformando-me com tão salutar mandado, cumprirei diligentemente, quanto me fôr possivel, a prescrita obrigação. Em primeiro lugar certamente (o que fiz de passagem nas anteriores cartas) tratarei desta parte do Brasil, chamada São Vicente, que dista da Equinocial vinte e três gráus e meio medidos de Nordeste a Sudoeste, na direcção do Sul, na qual a razão da aproximação e do afastamento do sol, as declinações das sombras e como se fazem as diminuições e crescimentos da lua, não me é facil explicar; por isso, não tocarei nessas cousas, nem vejo nelas razão para que sejam diferentes do que aí se observa.

Na divisão, porém, das partes do ano é cousa inteiramente diversa: são na verdade de tal maneira confusas, que não se podem facilmente distinguir, nem marcar o tempo certo da primavera e do inverno: o sol produz com os seus cursos uma certa temperatura constante, de maneira que nem o inverno é demasiadamente rigoroso, nem o verão incomoda pelo calor; em nenhuma quadra do ano faltam os aguaceiros, pois de quatro em quatro, de três em três, ou de dois em dois dias, uns por outros, alternativamente, se sucedem a chuva e o sol; costuma contudo em alguns anos a cerrar-se o céu e a escassearem as chuvas, de tal modo que os campos se tornam estereis e não dão os costumados frutos, não tanto pela fôrça do calor, que não é excessivo, como pela carencia de água; algumas vezes, tambem, pela muita abundancia de chuvas, apodrecem as raizes que temos para alimento.

Os trovões no entanto fazem tão grande estampido, que causam muito terror, mas raras vezes arremessam raios; os relampagos lançam tanta luz, que diminuem e ofuscam totalmente a vista, e parecem de certo modo disputar com o dia na claridade; a isto se ajuntam os violentos e furiosos pègões de vento, que sopra algumas vezes com ímpeto tão forte, que nos leva a ajuntarmo-nos alta noite e corrermos ás armas da oração contra o assalto da tempestade, e a sairmos algumas vezes de casa por fugir ao perigo de sua quéda; vacilam as habitações abaladas pelos trovões, caem as árvores e todos se aterram.

Não ha muitos dias, estando nós em Piratininga, começou, depois do pôr do sol, o ar a turvar-se de repente, a enublar-se o céu, a amiudarem-se os relampagos e trovões, levantando-se então o vento sul a envolver pouco a pouco a terra, até que, chegando ao Nordeste, de onde quasi sempre costuma vir a tempestade, caiu com tanta violencia que parecia ameaçar-nos o Senhor com destruição: abalou as casas, arrebatou os telhados e derribou as matas; a árvores de colossal altura arrancou pelas raizes, partiu pelo meio outras menores, despedaçou outras, de tal maneira que ficaram obstruidas as estradas, e nenhuma passagem havia pelos bosques; era para admirar quantos estragos de árvores e casas produziu no espaço de meia hora (pois não durou mais do que isso),e, na verdade, se o Senhor não tivesse abreviado aquele tempo, nada poderia resistir a tamanha violência e tudo caíria por terra.

O que, porém, no meio de tudo isso, se tornou mais digno de admiração, é que os Indios, que nessa ocasião se compraziam em bebidas e cantares (como costumam), não se aterraram com tanta confusão de cousas, nem deixaram de dansar e beber, como se tudo estivesse em completa traquilidade (02).

Vou entretanto referir um fato, que por si mesmo julgarás mais digno de dôr do que de riso; lamentarás certamente a cegueira e escarnecerás da loucura. Poucos dias depois de se passarem estas cousas, em uma certa aldeia de Indios, a que vim com alguns sacerdotes aplicar a medicina da alma e do corpo a um enfermo,

encontrámos um feiticeiro de grande fama entre os Índios, o qual, como o exortassemos muito que deixasse de mentir e reconhecesse um só Deus, Creador e Senhor de todas as cousas, depois duma (por assim dizer) longa disputa, respondeu: “Eu conheço não só Deus, como o filho de Deus, pois ha pouco, mordendo-me o meu cão, eu chamei o filho de Deus que me trouxesse remédio; veiu ele sem demora e, irado contra o cão, trouxe comsigo aquele vento impetuoso, que soprou ha pouco para que derrubasse as matas e vingasse o dano que me causara o cão”.

Assim falou ele, e respondendo-lhe o sacerdote: “Tu mentes!”, não puderam conter o riso as mulheres já cristãs ás quais ensinamos as cousas da fé, escarnecendo de certo da estulticia do feiticeiro. Omito outras cousas porque não são para aqui; menos aquilo que não fôra fóra de proposito para advertí-lo, nem a frase “tu mentes” parece proferida com menos reverência, pois os Brasis não costumam usar de rodeio algum de palavras para explicar as cousas: assim, a palavra “mentes”e outras nesse sentido são ditas sem ofensa alguma: pelo contrário, pronunciam claramente, sem nenhum vexame, as palavras que significam os órgãos secretos de um e outro sexo, a cohabitação e outras da mesma natureza.

A divisão das estações do ano (se se considerar bem) é totalmente oposta á maneira por que aí se compreende; porque, quando lá é primavera, aqui é inverno, e vice-versa; ambas, porém são de tal modo temperadas, que não faltam no tempo de inverno os calores do sol para contrabalançar o rigor do frio, nem no estio para tornar agradaveis os sentimentos, as brandas aragens e os humidos chuveiros, posto que esta terra, situada (como já disse) á beira-mar, seja regada em quasi todas as estações do ano pelas águas dachuva.

Todavia, em Piratininga, que fica no interior das terras, a 30 milhas do mar, e é ornada de campos espaçosos e abertos, e em outros lugares que se lhe seguem para o ocidente, a natureza procede de tal maneira que, se os dias se tornam extremamente calidos por causa do calor abrasador (cuja maior fôrça é de novembro a Março), a vinda da chuva lhes vem trazer refrigério: cousa que aqui acontece agora. Para explicar isso em breves palavras: no inverno e no verão há grandes chuveiros, que servem para temperar os ardores do sol, de sorte que ou precedem de manhã ao estio, ou vêm á tarde.

Na primavera, que principia em Setembro, e no estio, que começa a vigorar em Dezembro, as chuvas caem abundamentemente, com grande tormenta de trovões e relampagos. Então, há não só enchentes de rios, como grandes inundações dos campos; nessas ocasiões, uma imensa multidão de peixes, que saem da agua para pôr ovas, deixam-se apanhar sem muito trabalho entre as ervas, e compensam por algum tempo o dano causado pela fome que trouxera a subversão dos rios.

Assim, êste tempo é esperado com avidez, como alívio da passada carestia: a isto chamam os lndios pirâcema, isto é, “a saida dos peixes”; por quanto, duas vezes cada ano, quasi sempre em Setembro e Dezembro ealgumas vezes mais frequentemente, deixam os rios e se metem pelas ervas em pouca água para desovar; mas no estio, como é maior a inundação dos campos, saem em mais consideraveis cardumes e são apanhados em pequenas redes e até mesmo com as mãos, sem aprêsto algum (03).

Finalmente, os grandes calores do verão são moderados pela muita abundancia de chuvas; no inverno, porém (passado o outono que, começando em Março, acaba numa temperatura agradavel), cessam as chuvas; a fôrça do frio torna-se horrivel, sendo maior em Junho, Julho e Agosto; nesse tempo vimos muitas vezes não só as geadas espalhadas pelos campos a queimarem arvores e ervas, como tambem a superfície da água toda coberta de gêlo.

Então esvasiamse os rios e baixam até o fundo, de sorte que se acostuma apanhar à mão, entre as ervas, grande porção de peixes. Aos 13 de Dezembro, completando o sol sua carreira em Piratininga,chega a maior altura; esse dia que é muito longo e em que não há declinação alguma de sombras, dura 14 horas e não passa além do Sul; daí, porém, volta para o Norte, em cuja retirada sóe ser maisrigoroso o calor e febres agudas com dôres de lado molestam os corpos.

O undecimo dia de Junho, que é curtissimo, e no qual o sol está muito afastado de nós, dura (segundo creio) cerca de dez horas desde o romper do dia até o ocaso (04). Até aqui falámos do movimento do tempo; passo agora a tratar de outras cousas.

Ha um certo peixe, a que chamamos boi marinho, os Indios odenominam iguaragua, frequente na Capitania do Espirito Santo e em outras localidades para o norte, onde o frio ou não é tão rigoroso, ou é algum tanto diminuto e menos que entre nós; é êste peixe de um tamanho imenso; alimenta-se de ervas como o indicam as gramas mastigadas prêsas nas rochas banhadas por mangues.Excede ao boi na corpulencia; é coberto de uma péle dura, assemelhando-se na côr á do elefante; tem junto aos peitos uns como dois braços, com que nada, e embaixo deles têtas com que, aleita os proprios filhos; tem a bôca inteiramente semelhante á do boi.

É excelente para comer-se, não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe: da sua gordura, que está inerente á péle e mòrmente em tôrno da cauda, levada ao fogo faz-se um môlho, que pode bem comparar-se á manteiga, e não sei se a excederá; o seu oleo serve para temperar todas as comidas: a todo o seu corpo é cheio de ossos solidos e durissimos, tais que podem fazer as vezes de marfim (05).

Convem relatar aqui algumas cousas que vêm a proposito e que, escritas há mais de dois anos, pelo máu exito da incerta navegação, julgo não terem chegado aí. Tendo eu e quatro Irmãos (10 de outubro de 1553) saido da cidade do Salvador (que tambem é chamada Baía de Todos os Santos), depois de fazermos 240 milhas por um mar tranquilo á feição do vento, chegámos a uns bancos de areia que, estendendo-se para o mar na distância de 90 milhas, e oferecendo uma como muralha em linha réta, tornam dificil a navegação; aí deitando a cada passo a sonda, gastámos todo o dia e, fundeada a embarcação, pelo meio de estreitos canais entrincheirados por montes de areia, por onde se costumava navegar; no dia seguinte, porém, reunidos felizmente todos á tarde, os marinheiros, julgando-se já livres de perigo, tranquilizaram-se e não pensaram mais nele, quando, de repente sem ninguem o esperar, o leme salta fóra dos eixos e encalha o navio; sobrevem ao mesmo tempo uma repentina tempestade de vento e aguaceiros, que nos atira para apertados estreitos; o navio era arrastado sulcando areias e, por causa dos frequentes solavancos, temiamos que se fizesse todo em pedaços.

Entretanto, levados para um lugar baixo e inclinando-se a embarcação toda para um lado, lembrámo-nos de implorar o socorro divino, expondo as reliquias dos Santos, que conosco traziamos, e lançando ás ondas um Agnus Dei, aplacou-se a tormenta; caimos em um pégo mais fundo, onde, deitando-se a cada passo a ancora ecolocado o leme em seu lugar proprio com pequeno trabalho e com grande admiração de todos nós, esperavamos ficar tranquilos até o romper da aurora.

Era um lugar fechado de todas as partes por cachopos e monticulos de areia e sómente para o lado da prôa havia uma estreita saida; quando no entanto se começava a descansar, eis que tudo se perturba na ameaçadora escuridão da noite, os ventos sopram com violencia do Sul, caem imensos aguaceiros, e, revolvido em todos os sentidos, o mar abalava violentamente a embarcação, qual, já gasta pelo tempo, pouca resistencia oferecia: aberta embaixo para as ondas, estava tudo coberto dagua; exgotava-se o porão em cima para as chuvas quatro ou cinco vezes por hora e, para dizer a verdade, nunca se esvasiava; ninguem podia conservar-se a pé firme, mas andando de gatinhas e para dizer corriam uns pelo tombadilho, outros cortavam os mastros, aqueloutros preparavam as cordas e amarras: neste comenos, a lancha, que estava atada á extremidade do navio, foi arrebatada pelo mar, partindo-se o cabo que a prendia; então começávamos todos a tremer e a sentir veemente terror: viase a morte deante dos olhos; toda a esperança de salvação estava posta em uma corda e, quebrada esta, a nave ia inevitavelmente despedaçar-se nos baixios que a cercavam pela pôpa e pelos lados; corre-se á confissão: já não vinha cada um por sua vez, mas dois a dois e o mais depressa que cada qual podia.

Em uma palavra, fôra fastidioso contar tudo que se passou; rompeu-se a amarra: “Está tudo acabado”! gritaram todos. Todavia, no meio de tudo isso não deixavamos de confiar com toda a fé em Deus, se bem que cada um contasse com certeza morrer ali, e mais curasse salvar a alma do que o corpo; confiavamos não só nas reliquias dos Santos, como tambem no patrocínio da Santissima Virgem Maria, na vespera de cuja Apresentação tinham acontecido estas cousas.

Muitas vezes (creio) nos veiu isto ao pensamento; a mim, de certo, e muita consolação me dava a idéa de que, naquela mesma ocasião, muitos dos nossos Irmãos que andavam por diversas regiões, tinhamtodos o espirito alçado para Deus, e cujas orações, subindo á presença divina, pediam auxílio para nós outros, e que, por seus suspiros e gemidos, finalmente movida, a divina piedade pudesse trazer-nos os beneficios da sua costumada misericordia.

Entretanto, não nos servindo das velas nem de auxílio algum humano, eramos levados sãos e salvos pelo meio dos escolhos, para onde a corrente nos arrebatava, e esperando a todo o momento que se despedaçasse a embarcação, expostos á chuva, flagelados por tremenda tempestade, vendo a morte a cada instante, passámos toda aquela noite sem dormir. Ao romper do dia, recobrando algum alento, concertámos da melhor maneira as velas e, procurando a terra, desejavamos ao menos encalhar o navio na praia; mas, levados por uma corrente mais favoravel do que esperavamos, chegámos a um porto bastante seguro, habitado por lndios, onde nos acolheram eles benignamente, e nos trataram com humanidade.

Finalmente, quão grande fôra a misericordia do Senhor para conosco, a qual não duvidamos que nos fosse propícia, não só pelos merecimentos e preces da bemaventurada Virgem, como dos Santos, cujas relíquias traziamos conosco, ficou bem manifestado pelo desgraçado naufragio de outro navio que nos precedera, o qual, depois de ter saido paralugares de vau, impelido por um vento próspero, arrebatado todavia não só pelo vento Sul, mas tambem pela violência do mar, encalhara na praia e se despedaçara; com seus aparelhos e utensilios nos ressarcimos dos que haviamos perdido, e concertámos o nosso já meio despedaçado navio.

No dia seguinte ao da nossa arribada, visitando eu com alguns Irmãos as habitações do Indios, foi nos apresentada uma criancinha quasi prestes a expirar e falando nós a seus pais para batizá-la, eles anuiram de boa mente a isso; batizámo-la, e algumas horas depois foi levada para o céu. Feliz naufragio que conseguiu tal resultado!

Aí demorámonos oito dias por causa dos ventos contrarios que reinavam; e como pouca provisão nos sobrasse para o resto da viagem, lançaram os marinheiros a rede ao mar, e colheram de um só lanço dois dos tais bois marinhos, os quais, apesar de serem tão grandes não romperam a rede, quando um só deles era suficiente para rasgar e despedaçar muitas redes: e assim, provendo-nos com fartura a munificiencia divina, fizemos o resto da viagem.Falo, porém, disso só de passagem; torno de novo ao propósito e, como começara a fazer menção de peixes, prosseguirei.

Em certa quadra do ano apanha-se uma infinita quantidade de peixes; a isso os Indios chamam pirá-iquê, isto é, “entrada dos peixes”; porquanto vem inumeros deles de diversas partes do mar, entram para os lugaresestreitos e de pouco fundo do mar, afim de pôrem as ovas (07).

O que vou agora referir é admiravel, mas unanimemente comprovado e verificado por notoria experiência: dez ou doze dos maiores sobem á tona dagua como exploradores, e olhando e examinando o lugar todo, se porventura lhes fazem alguma ofensa, voltam, como que pressentindo a traição, para conduzir a outra parte o seu rebanho.

Se porém (o que já foi acautelado, para que com certeza nenhum mal façam aos que têm de entrar) tudo lhes parece estar em segurança e vêm que o lugar é apropriado, introduzem, voltando, uma inumera multidão de peixes por estreitas entradas (pois que já todo o sítio está cercado, deixando apenas uma pequena abertura, a qual se póde com facilidade fazer, por causa da pouca porção de agua); encurralados aí, e embriagados com o suco de um certolenho que os Indios chamam timbó (08), são apanhados sem o minimo trabalho muitas vezes mais de doze mil peixes grandes.

Isso é de tal sorte comum em muitos lugares que, quando os apanham em abundância, os deixam atirados na praia. Os peixes são mui saudaveis nesta terra e podem-se comer todo o ano sem prejudicar á saúde, e até na doença, sem receio da sarna, que aqui não existe em parte alguma.

Encontram-se no interior das terras cobras a que os Indios denominam sucuryúba, de maravilhoso tamanho: vivem quasisempre nos rios, onde apanham para comer os animais terrestres, que a miudo os atravessam a nado; saem porém ás vezes para a terra e os acometem nos atalhos, em que costumam correr daqui para ali.

Não é facil acreditar-se na extraordinaria corpulencia destas cobras; engolem um veado inteiro e até animais maiores; isto tem sido observado por todos; alguns dos nossos irmãos o viram com espanto, e até um deles vendo uma serpente a nadar no rio, pensou que era um mastro de navio.

Dizem que não têm dentes e só se enroscam nos animais, matam-os introduzindo-lhes a cauda peloanus, e triturando-os com a bôca os devoram inteiros. A êste respeito contarei cousas estupendas e não sei se serão criveis; mas, tanto os Indios, como os Portugueses que passaram muitos anos de sua vida nesta parte do globo, uno ore as afirmam.

Estas cobras engolem, como disse, certos animais grandes, que os Indios chamam tapiiara, de que tratarei ao deante; como porém o seu estomago não os pode digerir, caem por terra como mortas, sem poderem mover-se, até que apodreça o ventre juntamente com a comida: então, as aves de rapina rasgam-lhes a barriga e a devoram toda com o seu conteudo; depois a cobra, disforme, meio devorada, começa a reformar-se, crescem-lhe as carnes, estende-se-lhe por cima a pele, e volta á antiga fórma (09).

Ha igualmente lagartos que vivem do mesmo modo em rios, e a que chamam jacaré (10). São êstes animais de excessiva corpulencia, de modo que podem engulir um homem; cobertos de escamas durissimas e armados de agudissimos dentes; passam a vida na agua; ás vezes sobem até as ribanceiras, onde acontece serem mortos enquanto dormem, não todavia sem bastante custo e perigo, como sucede com o elefante.

As suas carnes, que são bôas de comer-se, cheiram a almiscar, maximè nos testículos, que é onde esta a maior fôrça do cheiro. Ha tambem outros animais do genero anfíbio, chamados capiyûára, isto é, “que pastam ervas”, pouco diferentes dos porcos, de côr um tanto ruiva, com dentes como os da lebre, exceto os molares, dosquais alguns estão fixos nas mandibulas e outros no meio do céu da bôca; não têm cauda; comem ervas, donde lhes provém o nome; são proprios para se comer; domesticam-se e criam-se em casa como os cães: saem para pastar e voltam para casa por si mesmos (11).

Ha muitas lontras (12), que vivem nos rios; das suas peles cujos pelos são muito macios, fazem-se cintos. Ha tambem outros animais quasi do mesmo genero, designados no entanto por nome diverso entre os Indios e que têm identico uso (13).

Ha pouco tempo tendo um Indio atravessado com a flecha a um deles e saltando na agua para apanhá-lo, apareceu uma multidão de outros que estavam debaixo dagua, acometeram-o com unhas e dentes, de tal maneira, que trazendo com dificuldade o que havia morto, saiu quasi em pedaços, e passaram-se muitos dias primeiro que lhe sarassem asferidas. Êstes animais são quasi pretos, pouco maiores que os gatos, munidos de dentes e unhas agudissimas.

Seria fastidioso referir os generos dos caranguejos, e suas variedades e diversas fórmas. Deixo de falar dos que são terrestres, que vivem em cavernas subterraneas, que para si mesmos cavam; em toda a parte são frequentes, exceto entre nós; de côr verde-mar e muito maiores do que os aquáticos (14).

Alguns dos aquáticos estão sempre debaixo dagua: a natureza deu-lhes os ultimos braços planos proprios para nadar; os mais cavam cavernas para si nos braços de mar (mangues); dêstes, alguns têm as pernas vermelhase o corpo negro; outros são um tanto azulados e cheios de pelos; outros ainda têm duas cabeças, uma quasi do tamanho do corpo todo e outra proporcional a êste (15).

O “cancro” (que é aí de tão dificil cura) é facilmente curado aqui pelos Indios. Dão a essa doença o mesmo nome que entre nós; curam-a, porém, dêste modo: aquecem ao fogo um pouco de barro bem amassado, com que se fazem vasos, e tão quente quanto a carne possa suportar o aplicam aos braços do cancro, os quais morrem pouco a pouco, e tantas vezes repetem êste curativo até que, mortas as pernas, o cancro se solta e cai por si.

Isto foi ha pouco provado com experiência em uma escrava dos Portugueses, a qual sofria desta doença (16).Até aqui tenho falado dos animais que vivem na agua; tratarei agora dos terrestres, alguns dos quais são desconhecidos dessa parte do mundo. Primeiramente direi das diversas especies de cobras venenosas.

Algumas, chamadas jararacas (17), abundam nos campos, nas matas e até mesmo nas casas, onde muitas vezes as encontramos: a sua mordedura mata no espaço de vinte e quatro horas, posto que se lhe possa aplicar remédio e evitar algumas vezes a morte.

Isto acontece com certeza entre os Indios: se forem mordidos uma só vez e escapam à morte, mordidos daí por deante, não só não correm risco de vida, como sentem até menos dôr, o que tivemos mais de uma vez ocasião de observar.

A outra variedade denominam bóicininga, que quer dizer, “cobra que tine”, porque tem na cauda uma especie de chocalho, com o qual sôa quando assalta alguem. Vivem nos campos, em buracos que subterraneos; quando estão ocupadas na procreação atacam a gente; andam pela grama em saltos de tal modo apressados, que os Indiosdizem que elas voam; uma só vez que mordam, não ha mais remédio: paralizam-se a vista, o ouvido, o andar e todas as ações do corpo, ficando sòmente a dôr e o sentimento do veneno espalhados pelo corpo todo, até que no fim de vinte e quatro horas se expira (18).

Entretanto, quasi todos os Indios torram ao fogo e comem dessas cobras e de outras, depois de lhes tirarem a cabeça; assim como tambem não poupam aos sapos, lagartos, ratos e outros animais dêsse genero (18-A).Ha tambem outras admiravelmente pintadas de várias côres, de preto, de branco. de encarnado semelhante ao coral, as quais os Indios apelidam ibîbobóca, isto é, “terra cavada”, porque elas no rojarem fendem a terra à maneira de toupeiras; estas são as mais venenosas de todas, porém mais raras (19).

Ha tambem outras, que são denominadas pelos lndios bóiguatiára, isto é, “cobras pintadas”, por causa das suas diversas variedades de pintura; estas são igualmente mortíferas (20). Ha tambem outras quasi semelhantes, chamadas jararáca e tambem bóipeba, isto é, “cobras chatas”, porque quando feridas, contraemse e ficam mais largas; a mordedura dessas é também mortal (21).

Ha ainda outras, que se chamam bóiroiçanga, isto é, “cobras frias”, porque a sua mordedura comunica ao corpo um grande frio; estas, conquanto maiores do que as outras, são menos venenosas (por isso que não causam a morte); têm toda a bôca armada de dentes agudos, o que não se dá com as outras, pois as outras têm apenas quatro dentes curvos, tão subtis e ocultos que, se não se observa com cuidado, poder-se-há supor que os não têm; neles é que está apeçonha (22).

Todas estas, porém, exceto as que são venenosas, das quais ha, não só grande cópia, mas tambem diversidade, são tão frequentes, não se póde viajar sem grande perigo: vimos cães, porcos e outros animais sobreviverem quando muito seis ou sete horas á mordedura delas.

Não raro temos caído em semelhantes perigo, tendo-as encontrado muitas vezes correndo pelos caminhos de um lado para outro em alguns povoados, a que nos tem chamado o nosso dever. Uma vez, voltando eu para Piratininga de certa povoação de Portugueses, para onde a obediencia me fizera ir com outro irmão a ensinar a doutrina, encontrei uma cobra enroscada no caminho; fazendo primeiramente o sinal da cruz, bati-lhe com o bastão e matei-a.

Pouco depois começaram três ou quatro pequenos filhos a andar pelo chão; e admirando-nos de onde aquelas que antes não apareciam tinham saido tão de repente, eis que começaram a sair outros do ventre materno: e sacudindo eu o cadaver apareceram outros filhos ainda, em numero de onze, todos animados e já perfeitos, exceto dois.

Ouvi tambem contar, por pessoas dignas de crédito, de uma outra em cujo ventre foram encontradas mais de quarenta (23). Todavia, no meio de uma multidão tão grande e frequente delas, o Senhor nos conserva incolumes, e confiamos mais nele do que em contra-veneno ou poder algum humano; só descansamos em Jesus, Senhor nosso, que é o unico que póde fazer com que nenhum mal soframos, andando assim por cima de serpentes. Ha tambem outras como pequenos escorpiões, que habitam em certos montes de terra feitos pelas formigas: a estas chamam os Índios bóiquíba, isto é, “cobras de pés pequenos”, piolhos de cobras: são vermelhas, pouco maiores que aranhas: têm duas cabeças,

como os caranguejos, e a cauda recurvada, na qual têm uma unha tambem curva, com que ferem. Não matam, mas incomodam extraordinariamente, de maneira que a dôr que produzem não passa antes de vinte e quatro horas (24). O que direi das aranhas, cuja multidão não tem conta? Umas são um pouco ruivas, outras côr de terra, outras pintadas, todas cabeludas; julgarias que são caranguejos, tal é o tamanho do seu corpo: são horriveis de verse, de maneira que só a sua vista parece trazer deante de si veneno (25).

Um certo animalejo do genero dos vespões, inimigo destas, persegueas encarniçadamente, mata-as com o ferrão, leva-as para pequenosburacos que cava para si, e aí as come (26). Ha aqui umas aranhas de genero diverso, tendo tambem um nome diferente do destas e que exalam muito mau cheiro: são frias por natureza, não saem das casas, senão quando o sol está muito ardente; por essa razão os que bebem delas, pois as mulheres brasilicas muitas vezes soem preparar bebidas envenenadas, são acometidos de um excessivo frio e tremor; para isso o vinho é excelente remédio.

Ha outro bichinho quasi semelhante á centopéia, todo coberto de pelos, feio de ver-se, de que ha vários generos, diferem entre si na côr e no nome, tendo todos a mesma fórma (27). Se alguns deles tocarem no corpo de alguem, causam uma grande dôr que dura muitas horas; os pelos de outros (que são compridos e pretos, de cabeça vermelha) são venenosos, e provocam desejos libidinosos.

Os lndios costumam aplicá-los ás partes genitais que assim incitam para o prazer sensual; incham elas de tal modo que em três dias apodrecem, donde vem que muitas vezes o prepucio se fura em diversos lugares, e algumas vezes o mesmo membro viril contrai uma corrupção incuravel: não só se tornam eles feios pelo aspecto horrivel da doença, como tambem mancham e infeccionam as mulheres com quem têm relações (28).

Encontram-se tambem entre nós as panteras, das quais ha duas variedades: umas são côr de veado, menores essas e mais bravias; outras são malhadas e pintadas de várias côres: destas encontramse em todos os lugares (29); os machos, pelo menos, excedem no tamanho a um carneiro, embora grande, pois as femeas são menores; são em tudo semelhantes aos gatos e bôas para se comerem, o que experimentámos algumas vezes; são de ordinario medrosas e acometem pela retaguarda; dotadas porém de grande força, com um só golpe das unhas ou uma dentada dilaceram tudoquanto apanham; escondem as presas debaixo da terra, segundo afirmam os Indios, e aí as vão comendo até consumirem.

São de extrema ferocidade, o que, conquanto possa ser comprovado por muitos fatos, que sucessivamente e de quando em quando se dão, bastará referir dois ou três para mostrá-lo. A beira de um rio; estando alguns Cristãos descansando uma noite em pequenas cabanas, dormia um lndio debaixo da cama, ou antes na rêde de um, que aqui se suspende sustentada por duas cordas; eis que sobrevem um tigre alta noite e agarrando-o por uma perna, que por acaso tinha estendida, arrebatou-o, não podendo a multidão que ali se achava reunida, arrancar-lho das garras e dos dentes; o que aconteceu com muitos outros, que as mesmas onças arrebatam no primeiro sono do meio de muita gente; dêste fato poderiam ser apresentados muitos testemunhos.

Quarenta homens armados de balas, arcos e lanças, tencionando matar um tigre que tinha feito muitos estragos trucidando com grande ferocidade e devorando a muitos, a féra, não se temendo de tão grande fôrça de homens armados, acometeu a um deles, e matá-loia com as unhas enterradas pela cabeça e pelo peito, se dirigida com a ajuda do Senhor ao coração, uma flecha não a tivesse deitado por terra.

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Nas crenças nativas detectou-se algum vestígio da pregação apostólica (...) Poucos meses depois de sua chegada ao Brasil, em agosto de 1549, escreve Nobrega: Eles [os indigenas] tem memória do dilúvio e dizem que Sao Tome, a quem chamam Zome, passou por aqui.
*História da Igreja no Brasil, 1977. Eduardo Hoornaert

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Cada experiência é um degrau para o progresso da alma. Não fique preso ao passado. Você está, agora, diante de uma nova experiência. Dedique-se a ela de corpo e alma, e verá surgir o próximo degrau de evolução.
Masaharu Taniguchi
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